sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

COM PAPAS E BOLOS

No ano em que o regime republicano vê comemorados os cem anos da sua implantação revolucionária, com festividades que vão custar dez milhões de euros, que já começaram a ser gastos com a prodigalidade costumada para favorecer amigos e companheiros políticos, as águas agitam-se entre os republicanos por causa das eleições presidenciais, que só ocorrerão no próximo ano.

A chefia do Estado para a República, é não um órgão de soberania que representa a estabilidade do poder democrático, garante o funcionamento normal e adequado das instituições, arbitra a conflitualidade decorrente da disputa democrática pela ascensão ao poder político, se posiciona institucionalmente acima das forças partidárias, dos interesses de grupos políticos, económicos e sociais, representa a Nação e o Estado internamente e nas relações internacionais. A chefia do Estado, em República, é um palco de luta de política de uma parte do eleitorado contra outra, de uma maioria conjuntural com outras maiorias conjunturais, de apoio a forças vencedoras da mesma área política de onde provém, de criação de dificuldades ou mesmo de bloqueio às que não comungam da sua visão ideológica e política.

Daí advém, naturalmente, a importância que as forças políticas atribuem à eleição presidencial, a tal ponto que a um ano de distância do acto eleitoral, há já candidatos que se posicionam, discursos de sibilino ataque ao presidente que ainda é, manobras de bastidores que se desenvolvem, artigos que se escrevem sobre factos de há muitos meses para implicar opositores a um provável candidato, oratórias de lindíssimo recorte literário mas ocas de sentido real. Sem o menor respeito institucional pelo Chefe do Estado ainda em funções, a luta para disputar o seu alto cargo na hierarquia do Estado já começou.

No ano do centenário da implantação da República, um antigo Chefe do Estado, vem dizer que se comemoram cem anos do regime, mas que quarenta e oito anos desses cem não foram regime republicano mas ditadura. Plasmando no seu pensamento político o significado afrancesado de república, como o regime da separação de poderes e legitimidade da assunção do poder pelas maiorias eleitorais, ou seja, democracia, exclui os regimes de poder autocrático ou não democrático das repúblicas.

No ano do centenário da República que afinal não tem cem anos, um disponível candidato a candidato, vem invocar a ética republicana – capítulo da Ética não consagrado em nenhum manual didáctico – de um Presidente da República que abandonou as suas funções para se dedicar às letras e aos seus interesses e gostos estéticos, como paradigma do alto cargo a que se quer alcandorar.

No ano do centenário que não é da República que ainda é, esse putativo candidato irá formalizar a sua candidatura no dia 31 de Janeiro, invocando a primeira insurreição republicana. Insurreição que foi mal sucedida. Uma boa data, como se vê.

Neste ano comemorativo de uma revolução de há cem anos que ofereceu ao País dezasseis de balbúrdia, de perseguições à Igreja, de perseguições aos vencidos, de perseguições implacáveis às forças opositoras dos governos no poder, de censura, de polícia política, de uso das forças da ordem para a manutenção do poder, de má administração, de descalabro político e económico, quarenta e oito anos de ditadura militar primeiro, e poder autoritário depois, com o cerceamento da liberdade, com a censura, com as prisões arbitrárias por razões políticas, da polícia política, da repressão e quase trinta e cinco da III República que, corrigindo alguns defeitos dos outros períodos, assumiu ou ampliou outros aspectos negativos, como a falta de projecto nacional, a incompetência governativa, o compadrio político, as negociatas, a corrupção e falta de Justiça e as injustiças sociais.

Neste ano do centenário da República, há muito que comemorar, como se vê. E talvez os dez milhões de euros sejam, afinal, insuficientes, para tentar conseguir enganar com festanças e artifícios os que desses cem anos têm poucos ou nenhuns conhecimentos e memória e vêm nessas folganças uma forma de esquecer o presente sem se aperceberem que é uma mera consequência do passado. Como diz o ditado popular “com papas e bolos se enganam os tolos”.

João Mattos e Silva
(Presidente da Real Associação de Lisboa)

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