AS MENTIRAS QUE CONTAM ÀS CRIANÇAS...
Recentemente, fizeram-me chegar um vídeo curioso. Está na página Web do concurso “Conte Connosco”, promovido pelo Santander Totta e que visa premiar, por votação pública, os melhores trabalhos enviados a concurso nas áreas do vídeo, da música e da literatura. O vídeo é da autoria da jovem Ana Paula Oliveira, aluna da escola EB 2,3 da Arrifana, e intitula-se “República: Porquê? Para quê?”. O vídeo tem como personagem uma jovem criança, chamada Maria, que viveu a sua infância durante os últimos anos da Monarquia e os primeiros da República, e que era oriunda de uma família instruída e republicana. Esta menina, no vídeo, conta o que viu e viveu às crianças da sua idade, que estudam esses acontecimentos no século XXI. E o que nos conta a jovem menina Maria?
Começa a história com uma contextualização do país no fim do reinado de D. Carlos: o povo estava triste com o governo do rei, comia mal, não tinha trabalho, passava dificuldades e havia muitos analfabetos e impostos, ao passo que o clero e a Família Real viviam no luxo e o Rei, um incapaz, só caçava e pintava enquanto o país, atrasado e endividado, sofria. E aqui entra a reivindicação das terras entre Angola e Moçambique e o consequente Ultimato por parte da Inglaterra. D. Carlos cede à Inglaterra para evitar uma guerra. Segundo a jovem, terá sido então que as pessoas, sentindo que o Rei traíra a Pátria, começaram a conspirar para acabar com a Monarquia, a mostrar desprezo pelo Rei e pela Igreja e um forte ódio anti-britânico. Um ano depois, no Porto, o Partido Republicano dá um golpe a 31 de Janeiro, mas falha.
Segundo a jovem, com a Monarquia o povo não escolhe quem o governa, pois o rei passa o trono para o filho mais velho, ao passo que a República traz mais liberdade pois o povo escolhe por eleição governo e presidente. E claro, a República ia resolver todos os problemas do país.
Com o regicídio e a morte do Rei e do Príncipe, começa o princípio do fim da Monarquia. Sobe ao trono D. Manuel II e não consegue evitar as conspirações ou resolver os problemas. Logo se dá o 5 de Outubro, o povo fica todo contente e os jornais dão vivas ao novo regime enquanto a Família Real se vai embora para Inglaterra. Com o novo regime, a menina diz que muda quase tudo: a Igreja é atacada e perde regalias, institui-se o divórcio, o casamento civil, o direito à greve, a GNR e acaba-se com a nobreza. Muda-se também o hino, a bandeira, a moeda e a grafia do português. Contudo, a instabilidade política fica igual: em 16 anos existiram oito presidentes e quarenta e cinco governos. Mas também existiram grandes nomes da cultura e o inicio da luta pelos direitos das mulheres. E assim termina a narração da jovem, resumida por mim nestas breves linhas.
Já terminei o ensino preparatório e, com uma licenciatura em História e um mestrado na área a caminho da sua conclusão, o que aqui transcrevo assusta-me porque é mentira, e porque anda a ser dita às nossas crianças como parte da criação de um mito: a Monarquia era má, o rei era incapaz e a República é a salvadora da Pátria. Um mito que as crianças inocentes não sabem que não é verdade. Principiemos então por desmontar este texto e esta mentira, e colocar a verdade histórica a nu e com rigor:
Muito à imagem dos dias de hoje, o Portugal de fins do século XIX vivia uma crise a todos os níveis, assim como outros países europeus, sendo que a situação de uns afectava os outros. Existiam assimetrias sociais mas mais ténues do que as do inicio do século. Havia fome, desemprego e analfabetismo mas não era só em Portugal, eram males endémicos de vários países, principalmente nas camadas mais pobres. E claro, apesar do descontentamento do povo com os governos, o Rei não era o alvo do desagrado. O povo já nessa altura votava para eleger o Governo, e com um colégio eleitoral maior do que na Primeira República. Contudo, os governos estavam mais interessados nas guerras pessoais e partidárias do que no interesse nacional, ontem como hoje. Tais factos, associados à agitação causada pelos atentados bombistas dos anarquistas, republicanos e terroristas da Carbonária, causavam o tão falado descontentamento. D. Carlos apenas se torna um alvo do desagrado popular com o Ultimato Inglês, em que prefere ceder às pretensões estrangeiras a travar uma guerra idiota (e suicida) por meia dúzia de hectares em África. Uma decisão acertada mas que os republicanos divulgaram como uma traição, quando os traidores foram eles ao fazê-lo conscientes de que Portugal não tinha como vencer essa guerra a que se propunham.
Mais tarde, o Rei decide convidar para o Governo o líder da terceira via: João Franco, como forma de contornar o rotativismo partidário Mas o Partido Republicano impediu o sucesso da iniciativa ao eleger alguns deputados, à custa da campanha contra o Rei e a Família Real. Graças ao comportamento desses deputados, arruaceiro e desordeiro, o funcionamento normal das sessões tornou-se impossível e, por isso, o Rei demitiu o Parlamento e convocou novas eleições. Era o inicio da Ditadura de João Franco, uma ditadura que só se chama assim por o Governo funcionar sem Parlamento. Note-se: nunca em Monarquia Liberal se adoptaram formas de censura ou privação de direitos, e tal modo é verdade que se chegou a poder caricaturar o Rei como um porco para a matança, o que era sugestão para um regicídio. Portugal era uma democracia de tal modo que havia um governo eleito e um Parlamento que representava o Povo, e era esse Parlamento quem aclamava o rei, de modo que, apesar da hereditariedade do trono, podemos dizer que o poder real assentava no poder popular.
E a história prossegue com o Regicídio, em que vários conspiradores, republicanos, carbonários e anarquistas se unem para matar toda a Família Real. Claro, tal conspiração soube-se, e terá tido, suspeita-se, a colaboração de vários monárquicos, descontentes com o governo de Franco. D. Carlos, que estava em Vila Viçosa, soube também dos riscos à sua vida. Mas decidiu ainda assim regressar para a capital, e percorrer as ruas de Lisboa em coche aberto e quase sem escolta armada, como uma mostra de coragem para o povo. Custou-lhe a vida, bem como ao seu filho, e essa tragédia familiar e nacional chocou todo o país, habituado aos brandos costumes e à pacatez das decisões.
Subindo ao trono D. Manuel II, com 18 anos, inicia-se o governo de Acalmação, com o afastamento do impopular João Franco. A prioridade do novo governo era a procura da ordem e paz pública, contudo nem tempo teve para governar. A 5 de Outubro, abandonado por quase todos e traído por alguns, o Rei vai para Mafra após a vitória republicana em Lisboa, embarcando depois para o exílio em Inglaterra. Ao longo da sua vida, irá sempre e de várias formas demonstrar o seu amor a Portugal e aos portugueses, bem como o seu patriotismo.
Com o novo regime, a situação de Portugal torna-se muito mais severa: a desunião dos republicanos é óbvia desde cedo, e causa enorme instabilidade política. Quarenta e cinco governos e oito presidentes em dezasseis anos provam-no claramente, bem como os sucessivos golpes militares e políticos, perpetrados em nome da luta pelo Poder. A situação social também piora, com as greves a paralisar o país e a causar insatisfação, medo e agitação social, agravada pela falta de géneros alimentares, numa conjuntura que levou até ao estalar de vários motins. Uma situação social frágil que só se agrava com a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, a partir de 1916. Por sua vez, as finanças portuguesas, que já eram problemáticas e apresentavam um deficit elevado, entram praticamente em falência.
Além do agravar dos problemas do país, assiste-se ao corte dos direitos, liberdades e garantias democráticas. Instala-se a censura à imprensa, com vários jornais monárquicos a serem atacados, encerrados e vandalizados. Cria-se a primeira polícia política, a Formiga Branca, para prender ou mesmo assassinar os elementos que o regime achasse problemáticos. Esta polícia atacou as casas e negócios de muitos monárquicos, perseguindo-os sob o lema “morte ao talassa”, e forçando muitos ao exílio ou ao silêncio. Muitos foram presos ou mortos e nem os históricos do Partido Republicano escaparam. Foram assassinados, entre eles, o Visconde da Ribeira Brava, Machado Santos, José Carlos da Maia e António Granjo, este último morto à coronhada no pátio do Arsenal da Marinha, enquanto um dos soldados exclamava “Vejam o sangue do porco!”. Da mesma forma, a repressão da Igreja deu mão à Formiga para actuar sobre a clerezia: muitos padres foram presos, ou simplesmente agredidos e humilhados publicamente, vendo as suas vestes talares rasgadas em via pública e as suas igrejas vandalizadas e fechadas pelo regime. O bispo do Porto, D. António Barroso, foi mesmo preso e teve depois de se exilar por duas vezes.
Não era isto que se queria da República, mas foi o que ela trouxe a Portugal. Muitos dos nomes que haviam aplaudido a implantação em 1910 acabaram contra o regime, terminando presos, mortos, ou somente afastados das lides políticas, enojados com o que viam acontecer. Neste último patamar encontramos Guerra Junqueiro, Teófilo Braga ou Homem Christo, um dos líderes do 31 de Janeiro, mais tarde abandonado pelos próprios comparsas. Tudo terminou quando Gomes da Costa e Mendes Cabeçadas instauram um regime militar que põe fim ao regabofe e abre caminho ao regime de ditadura que conhecemos por Estado Novo.
E assim termino a exposição da verdade, da pura verdade que o vídeo não mostra.
Com efeito, é impossível negar o valor de algumas reformas implementadas pela República (divórcio, separação do Estado e da Igreja, casamento civil). Contudo, tirando estes escassos casos de sucesso, é necessário ver a verdade: a República foi um fracasso, e continua a ser todos os dias. Como é que um regime, que se diz ser mais democrático, pôde dar azo a tantos atropelos aos valores básicos da Democracia, derramar tanto sangue, alçar-se ao poder por via de uma revolução militar e só depois de dois assassinatos políticos, que só foram dois porque não se conseguiu assassinar toda uma família? E como é que esse mesmo regime, aparentemente democrático, recusa em Parlamento um voto de pesar em homenagem ao rei que matou e se recusa a investigar deveras o seu assassinato, encobrindo provas e colocando um dos assassinos no Panteão Nacional, o lugar dos heróis da Pátria? Mais. Como é que esse regime, sempre democrático, permite uma campanha de branqueamento da história por ocasião do Centenário da sua implantação e, diariamente, efectua lavagens cerebrais às nossas inocentes crianças, contando-lhes nas escolas nada menos que mentiras e inverdades sobre o fim do regime monárquico e a implantação republicana? Porque será que a verdade incomoda tanto tanta gente?
É com vergonha na cara que admito que a jovem Maria tem razão quando diz que, com a República, muda tudo. Muda para pior. Muitas vezes me disseram que não devemos esquecer a História, sob pena de virmos a repeti-la. Por isso, lanço este repto ao novo governo e ao novo Ministro da Educação: reformem-se os manuais escolares! Atrevam-se a ensinar a verdade às nossas crianças!
Filipe Manuel Dias Neto
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