quinta-feira, 14 de julho de 2011

DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA, DE NOVO NA MODA?

Recentemente, chegou-me às mãos um documento curiosíssimo. Trata-se da Carta de Compromisso do movimento Nova Cruzada. O que é esse movimento? Vamos pois analisar a dita Carta.

Pelo que li, trata-se de um movimento de regeneração nacional com sede no Santuário de Fátima, onde “o Líder Espiritual veio depositar a Esperança e a Mensagem que nos mobilizará para os desígnios que nos estão destinados”. Tem por objectivo “a vitória de Portugal, do Portuguesismo, da Família e da Fé”. Conta com o apoio incondicional e unânime dos “alheados, dos descontentes, dos desesperados e dos resignados” e com a acção dos “conscientes e determinados”. O movimento deseja mobilizar a Juventude Portuguesa “como forma de motivar a sua participação na construção do seu futuro” e dar à mulher portuguesa de volta o seu “nobre sentido maternal (…) e o enaltecimento dessa função”.

Diz ainda a Carta, que a Cruzada tem como protagonistas “todos os portugueses que sentem esse forte sentimento de paixão pela sua Raiz, que foi plantada num Território Sagrado (…), que vivem e não abdicam de viver numa sociedade cujo pilar dominante é a Família (…) que acreditam que Portugal é eterno (…) que sentem o seu Portuguesismo, que é Patriotismo, Humanismo e Mundanismo (…) que rejeitam (…) o usufruto dos bens materiais (…) e realçam o humanismo e a espiritualidade, (…) e que acreditam (…) de que temos hoje, tal como tivemos no passado, um desígnio a cumprir que nos enriquecerá e glorificará”. Tudo isto pela crença de que temos, como país, “uma importante missão a desempenhar hoje e no futuro”.

Mas estes Libertados (assim se chamam os integrantes do movimento) erguem a sua voz contra o quê em concreto? A Carta é explícita. Pretende-se “Uma mobilização colectiva contra a Mentira e a Manipulação (…) contra o laicismo militante, (…) a corrupção e os compadrios (…) os privilégios pessoais e partidários (…) contra a mediocridade da classe dirigente (…), os espartilhos e condicionamentos da liberdade de expressão (…) por melhorias no ensino público, Justiça e serviços públicos (…) pelos direitos regionais (…) pelo direito à segurança (…) igualdade (…) defesa do património, recursos e ambiente”.

Tudo isto parece muito bonito. Mas o que significa o texto da Carta? Este movimento, tão grande que nunca tinha ouvido falar dele, coloca sede em Fátima e ergue-se pela vitória da Fé Católica contra o laicismo e a separação da Igreja e Estado. Esta linha de pensamento, arcaica, fundamentalista, inquisitorial e de combate religioso, caiu em desuso no nosso país ainda em tempos do Marquês de Pombal que, apesar dos seus defeitos, sempre combateu tais obscurantismos. Estes Libertados parecem ainda não ter percebido os benefícios da expressão “Cada macaco no seu galho”, no tocante à Igreja e ao Estado. Pior, a sua luta pelo Catolicismo significa que, se eu fosse muçulmano, não podia ser um Libertado pois não era católico praticante e nem ia à missa ouvir o burburinho e tosse das beatas encobrir a voz, sumida e monocórdica, de um velho e pachorrento sacerdote a recitar o Credo de Niceia. Bem, sou católico conservador, mas a ideia de associar Estado e Igreja mete-me impressão de tão retrógrada e, segundo sei, nem a própria Igreja o deseja. Portugal tem de andar para a frente, não para trás.

No tocante à Pátria, verificamos que os Libertados desejam a vitória de Portugal e do portuguesismo, uma coisa que não sei o que é. Portuguesismo? O que é isso? Ter um Galo de Barcelos “made in China” sobre o frigorifico, uma garrafeira de vinho do Porto comprado por cinco euros na mercearia onde o merceeiro rouba no peso, ouvir diariamente doses quase mortais de Toy e Toni Carreira, cuspir para o chão na rua, atirar piropos ordinários a cada rabo-de-minissaia, viver do rendimento mínimo garantido, ter uma alimentação à base de cachorros, churros, farturas e cerveja, acreditar piamente que Camões foi o primeiro rei de Portugal e fazer o que for preciso para ir ao estádio apoiar o Clube e partir o nariz da claque contrária caso se perca o jogo? Além do mais, dado que vivemos num país atrasado, mal governado, inculto, falido e com um eterno complexo de inferioridade face aos parceiros europeus, porque não salientar o hábito, salutarmente português, de falar mal do próprio país? Podemos ter tudo de mau e estar em péssima situação, mas se há coisa que os portugueses têm de bom é isso: a autocrítica. Dizem ainda os Libertados que rejeitam o materialismo em prol da espiritualidade. Mas há coisa mais portuguesa do que passar fome só para manter um Mercedes à porta da barraca, para fazer ver? Acredito que não.

Em relação à Família, que dizem os Libertados? Acreditando que é o pilar basilar da sociedade, querem o regresso à típica família portuguesa, em que a mulher, maternal e caseira, vive para fazer filhos, educá-los e estar sempre pronta a servir o “seu homem” quando ele chega a casa, prontinho para se alapar frente à televisão, cansado depois de um longo dia sem fazer nada, no café, a discutir futebol e “gajas”, num interessante e produtivo debate regado a finos e tremoços. E claro, o jovem filho-família tradicional português, sempre interessado em aprender, numa busca de conhecimento em prol do seu futuro que o leva a incendiar metade da escola para aprender as propriedades combustíveis da gasolina, ou a arrear tareias de cinto no professor que tentar limitar a sua liberdade de expressão, que geralmente se limita ao acto de insultar colegas, comunicar por monossílabos e perguntar “o k faxex lg a tard” à colega mais gira da turma, por SMS, no meio da aula.

E, caso curiosíssimo, podemos também verificar que os Libertados, além de não parecerem conhecer bem o país que dizem amar tanto, e de terem um patriotismo irracional e arcaico, são ainda adeptos de uma ideia por demais ultrapassada e bacoca, a de um Portugal Messiânico, muito ao estilo da Mensagem do Fernando Pessoa, um indivíduo que hoje reconhecemos como um génio, mas que teve a sorte de viver na época em que viveu, fugindo à época actual, em que seria por certo rotulado de bipolar ou maníaco-depressivo e internado no Júlio de Matos ou no Magalhães Lemos, encharcado em Prozac até ao fim dos seus dias. Esta ideia de um Portugal sagrado, inviolável, invicto, eterno e com uma missão a cumprir é um mito sebastianista, ingénuo e infantil, mas que tem perseguido os portugueses como uma assombração maligna que lhes teima em puxar o tapete. Preferimos, como povo, esperar sentados pelo Encoberto, sem nada fazer, à espera que o destino dado por Deus a Portugal se cumpra magicamente. E preferimos ali continuar, à espera, sentados até que as aranhas façam teias entre a nossa cabeça e o chão, e o pó cubra os nossos braços, assim como o pó em que já se tornou o Encoberto, nas praias marroquinas ou num túmulo decorado nos Jerónimos. Preferimos sempre tudo isto porque tudo isto é mais fácil do que arregaçar as mangas e trabalhar, sem descanso, dia após dia, por um futuro melhor para os nossos, o que é de lamentar, pela burrice da escolha. Pessoalmente, fico triste e surpreso por ainda haver quem assim pense, no dealbar do século XXI.

Bem, a leitura desta carta fez-me em parte recordar um conhecido discurso de Salazar, que transcrevo: “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever. Assim se assentaram os grandes pilares do edifício e se construiu a paz, a ordem, a união dos portugueses, o Estado forte, a autoridade prestigiada, a administração honesta, o revigoramento da economia, o sentimento patriótico, a organização corporativa e o Império Colonial”. Estas breves linhas, de um discurso datado de 1936, bastam para sintetizar o conteúdo da Carta de Compromisso da Nova Cruzada. Espera-se o quê de alheados, descontentes e desesperados? Ideias novas para o país? Nem por isso, apenas se revisitam ideias antigas, para não dizer retrógradas, antiquadas e desadequadas para a situação actual do país. Nunca pensei… Deus, Pátria e Família, de novo na moda?

Filipe Manuel Dias Neto

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