domingo, 28 de agosto de 2011

A INJUSTIÇA DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO










É injusto discriminar o que é igual, mas não o que é diferente









É
como a gripe, esta recorrente mania: todos os anos, mais dia menos dia,
lá aparece o vírus da não-discriminação, a propagar a epidemia do
igualitarismo e a exigir, em consequência, a reestruturação de algum
órgão ostensivamente discriminatório, ou a aprovação de leis que
combatam a exclusão dos grupos sociais mais desfavorecidos.

 



Exagero? De modo algum! Em plena silly season, dois artigos do PÚBLICO, de 10 de Agosto passado, pugnam pela não-discriminação.

 



No primeiro, o autor insurge-se contra a composição alfacinha do
Conselho de Estado. Segundo o dito ensaísta, este órgão só tem duas
mulheres; não tem ninguém mais à esquerda do que os conselheiros de
esquerda que já lá estão; não tem membros que não sejam de Lisboa,
excepto os que o não são, como o autarca de Gaia e os líderes
insulares; não tem nenhum representante da Igreja Católica, nem das
artes, nem das letras, nem da sociologia (?!), nem da história, etc.
Tudo, claro, por culpa do Presidente da República que, apesar de
algarvio confesso, "lisboetizou", segundo a escrita do mesmo autor, o
supostamente nacional Conselho de Estado.

 



Não me compete, como é óbvio, comentar a sua opinião política que, ao
exigir a representatividade institucional dos vários grémios
profissionais e sociais, parece eivada de um certo saudosismo
corporativista. Não posso, contudo, deixar de registar a sua curiosa
tese de que a justiça decorre da igual, ou proporcional, representação,
nesse órgão consultivo do chefe de Estado, das mais expressivas
condições ideológicas, regionais, religiosas, etc.

 



A bem dizer, com a mesma razão, ou falta dela, também se deveria exigir
que o sexo feminino, o norte transmontano, o barlavento algarvio, os
evangélicos, os fadistas e os mais exímios pensadores pátrios
estivessem representados na nossa selecção de futebol, cuja composição
também parece muito politicamente incorrecta, sobretudo se se pensar que
essa equipa deveria ser, de algum modo, representativa da nação.

 



O outro texto versa sobre a Moldávia que, não obstante o assédio da
libertina Comunidade Europeia, ainda resiste à política da total
permissividade em relação à orientação sexual. Segundo "um estudo de
percepções da população" - vá-se lá saber o que isto seja! - "os
moldavos, afinal, discriminam. Discriminam, sobretudo, deficientes
físicos ou mentais, pobres, portadores de HIV, homossexuais, ciganos,
mulheres". Pelos vistos, segundo a abalizada opinião da autora do
artigo, em que não falta o coitadinho do costume, este é o principal
crime dos moldavos: "discriminam"! E, claro, uma nação que discrimina
não pode fazer parte da nossa moderna e decadente Europa.

 



Mas, afinal, discriminar é mau? Por exemplo, quando se impede uma senhora corcunda de ser top model,
está-se a cometer uma injustiça? E quando se proíbe que um invisual
seja árbitro de futebol, pode-se afirmar que se está a ser iníquo? A
não-aceitação de um paralítico, como membro da equipa nacional de
atletismo, é um acto punível, por arbitrário e contrário às convenções
internacionais dos direitos humanos e de defesa dos deficientes? A
norma que impede os cidadãos originariamente estrangeiros, mas
naturalizados portugueses, de concorrerem à Presidência da República, é
ilegal por ser xenófoba? Uma escola que não aceita, para seu
professor, um analfabeto, está a cometer um crime contra a igualdade de
direitos que a Constituição consagra? A atribuição do Prémio Nobel da
Química, a um determinado cidadão, tipifica um delito de injúrias aos
restantes químicos? E se um encenador recusar a uma qualquer Julieta o
papel de Romeu, ou a um qualquer Romeu o papel de Julieta, está também a
incorrer num comportamento ilícito, neste caso por razão do respectivo
sexo?

 



Discriminar é, apenas, distinguir. Será injusto quando distingue o que é
igual, mas não quando diferencia o que é diverso. Os corcundas, os
cegos, os paralíticos, os cidadãos nacionais de origem estrangeira, os
analfabetos, os cientistas, os homens todos e todas as mulheres são
iguais quanto à sua comum e inviolável dignidade humana. Mas não quanto
às suas capacidades físicas e intelectuais, nem às correspondentes
aptidões sociais, políticas e profissionais.

 



Aliás, a justiça não é, por definição, igualitária, mas
discriminatória. Não trata a todos por igual, mas procura atribuir a
cada qual o que lhe compete, não apenas em função da sua dignidade
humana, mas também das suas características pessoais objectivas que,
obviamente, não podem ser ignoradas, sobretudo quando se trata de lhes
reconhecer uma específica função social. Não deixa de ser curioso que
os grupos que antes mais apelavam à igualdade na diferença sejam também
agora os que mais reivindicam a indiferença na desigualdade, na medida
em que não toleram a discriminação do que é, logicamente, diferente.

 



Todos iguais? Com certeza, no que respeita à comum natureza e dignidade
do ser humano, bem como a todos os direitos e liberdades fundamentais.
Mas todos diferentes também. A ditadura do igualitarismo, ou da
não-discriminação, não serve a causa da justiça: só seremos
efectivamente todos iguais quando se reconhecer, também a nível social e
jurídico, que somos todos diferentes.

 


P. Gonçalo Portocarrero de Almada



Fonte: Povo



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