A REVOLTA DA SÉ
(…) Por seu lado, o capitão João Varela Gomes, que viria a ser odirigente militar do «golpe de Beja», em 1962, disse também que onúcleo dinamizador dessa movimentação era constituído por católicos e monárquicos, citando, além de Manuel Serra e do capitão Almeida Santos, o advogado Francisco Sousa Tavares e o capitão Nuno Vaz Pinto (…)
«O golpe da Sé»
Há 50 anos, na madrugada de 11 para 12 de Março de 1959, deveria tereclodido o «golpe da Sé», assim chamado porque os conspiradoresreuniram na Sé Patriarcal de Lisboa, de que era pároco o padre JoãoPerestrelo de Vasconcelos (*) , um dos participantes. Ainda está porfazer a história dessa falhada intentona que se propunha derrubar ogoverno de Salazar, na sequência da burla eleitoral das eleiçõespresidenciais de 1958, em que a candidatura do general Humberto Delgadotinha incendiado o país. Em particular, estiveram envolvidos muitoselementos que a PIDE nunca detectou, foram feitos previamente muitoscontactos pelos participantes directos no golpe entre oposicionistas aoregime para um eventual futuro governo provisório, em caso de vitória.No entanto, apenas me vou limitar a dar algumas informações sobre essafalhada tentativa de golpe, recolhidas no Arquivo da PIDE/DGS, políciaque terá sabido da eclosão do golpe com antecedência e conseguiumatá-lo à nascença.
Militares e civis católicos.
No seu livro Portugal Amordaçado, Mário Soares observou que o«golpe da Sé» nada teve a ver com os tradicionais movimentosputschistas militares anteriores, não só porque nela participaramdiversos jovens civis, já sem qualquer relação com os republicanos e«reviralhistas», como devido a ter sido «um movimento de clarainspiração católica, embora com a participação importante de elementosnão católicos, democratas de diferentes correntes oposicionistas». A«alma civil da conspiração foi o oficial da marinha mercante ManuelSerra, antigo dirigente da juventude católica e participanteentusiástico da candidatura Delgado» do ano anterior. Entre os civis,destacaram-se Fernando Oneto, Asdrúbal Pereira, Horácio Queiroz, RaulMarques, Jaime Conde, Pedro Bogarim, Amândio da Conceição Silva, queparticiparia no desvio do avião da TAP em 1961, e António Vilar, mortoanos depois na revolta de Beja, no final deste ano. Mário Soaresreferiu ainda a participação do seu amigo Eurico Ferreira, advogado deSantarém.
No «plano estritamente militar, se bem que a direcção supremapertencesse ao então major Pastor Fernandes, (…), o principalorganizador da conspiração parece ter sido o dinâmico capitão AlmeidaSantos, antigo dirigente da “Mocidade Portuguesa”, assassinado depoisem condições dramáticas». Outras figuras de relevo do movimento foramos majores Clodomiro Sá Viana Viana d´Alvarenga e Luís Calafate, oscapitães Fernando Costa Revez Romba e Amílcar Domingues, o 1.º tenenteda Armada Vasco da Costa Santos e o oficial miliciano médico JeanJacques Valente. Por seu lado, o capitão João Varela Gomes, que viria aser o dirigente militar do «golpe de Beja», em 1962, disse também que onúcleo dinamizador dessa movimentação era constituído por católicos emonárquicos, citando, além de Manuel Serra e do capitão Almeida Santos,o advogado Francisco Sousa Tavares e o capitão Nuno Vaz Pinto. Opróprio Varela Gomes chegou a participar numa das reuniões daconspiração, ao lado do então capitão de Engenharia Vasco Gonçalves edo capitão Baptista da Silva, que representava jovens oficiais deInfantaria, entre os quais se contavam ainda Firmino Miguel e SoaresCarneiro.
Segundo o relatório do processo da PIDE, a autoria do golpeMovimento Militar Independente (MMI) propunha-se «libertar o país doregime de força e ditadura pessoal a que se encontra sujeito, obrigandoo governo a abandonar o poder, pela efectuação de um golpe militar». Ocomando supremo do golpe ficava a cargo de uma Junta Militar Nacionaldo MMI e as forças revolucionárias eram compostas por militares –combatentes ou simpatizantes -, grupos técnicos, para ocupar, impedirou assegurar o funcionamento das emissoras, transportes colectivos,correios, telefones, centrais eléctricas, bem como por gruposauxiliares de combate ou informação.
A PIDE apurou que estavam ainda envolvidos na «conjura» muitoscivis, o principal dos quais era Manuel Serra, dirigente da JOC edirector da revista Náutica, enquanto chefe de uma milícia civil eelemento ligação entre esta e a Junta do MMI, através do majorCalafate. Observe-se a proximidade entre a sigla do MMI e a doMovimento Nacional Independente (MNI) de Humberto Delgado, que aliásaguardou a eclosão do golpe na embaixada do Brasil onde estava exilado,pronto a sair. Relativamente à acção dos civis, entre os quais havia ummédico e um padre, a PIDE assinalou, no seu relatório, que, a partir deJaneiro de 1959, se haviam activado os preparativos, segundo um planoque previa a divisão da cidade em quatro sectores, nos quais actuariamvários grupos, cada um constituído por cinco homens, sob o comando deum oficial miliciano fardado. A principal tarefa desses grupos era acaptura de membros do governo e de altas individualidades, os quaisseriam depois entregues às autoridades militares, e depois do «golpe»,manutenção da ordem nas ruas e nos edifícios públicos.
Falhanço do golpeMarcado o dia da eclosão do golpe para dia 12 de Março, cerca decem civis aliciados receberam ordem de concentração em vários pontos dacidade, em leitarias e cafés, enquanto os chefes dos grupos foramconvocados para os claustros da Sé de Lisboa, onde aguardariaminstruções. Dispondo de automóveis alugados ou táxis, cada grupo ficoude se dirigir a para um local receber armamento que Fernando Oneto iriabuscar numa determinada unidade militar da guarnição de Lisboa.
Às 23 horas de dia 11 de Março, todos se dirigiram aos lugaresmarcados e Manuel Serra, com quatro ou cinco colaboradores,distribuíram distintivos, cordas e fardas, quando chegaram à Sé doisoficiais da Junta Militar, um dos quais, Pastor Fernandes, deu ordem dedispersão e saída rápida dessa igreja, devido ao facto de o governo jáestar informado do golpe. Dado que Fernando Oneto já tinha partido paraa unidade militar de Lanceiro 2, onde iria carregar o armamento para osgrupos civis, Manuel Serra, o tenente Vasco da Costa Santos e o majorPastor Fernandes partiram num automóvel, guiado por Mateus, para aCalçada da Ajuda, onde conseguiram travar aquele de receber as armas.
O movimento falhou, entre outras razões, devido a diversas fugasde informação, uma das quais foi detectada pelo tenente-coronel Joaquimdos Santos Gomes, comandante do Batalhão de Metralhadoras 1, queprontamente avisou a tutela. Em consequência as unidades militares deLisboa entraram de prevenção e os oficiais, que tinham ligações, quer aesse quartel, quer ao Grupo de Companhias de Trem Auto, ao Regimento deInfantaria 1 e ao Regimento de Lanceiros 2, não actuaram. Terá havidotambém vigilância prévia e infiltração da PIDE, que soube de antemão oque se iria passar e prendeu 44 pessoas acusadas de participação nomovimento, a primeira das quais foi Manuel Serra, detido ao cair danoite de dia 13 de Março.
A prisão de católicosOutros dirigentes católicos detidos foram João Joaquim Gomes,presidente da JOC, José Hermínio Bidarra de Almeida, da JUC, e ArmandoBento dos Santos, pelo qual a Câmara Eclesiástica do Patriarcadointercedeu junto da PIDE. Um dos elementos presos pertencia à famíliada casa onde o pai de Salazar tinha sido feitor. Tratou-se do padreJoão Perestrelo de Vasconcelos, recentemente falecido, que a PIDE foideter, em 18 de Março de 1959, na sacristia da Igreja da Cova daPiedade. Começando por recusar seguir o agente que o foi prender, porpertencer a uma polícia que considerava ilícita, acabou depois pordizer que acederia se recebesse ordem para isso do Patriarcado.
O certo é que a isso foi instado por Manuel Gonçalves Cerejeira e,através de uma carta dirigida à PIDE pelo padre Perestrelo deVasconcelos, se fica a saber que se apresentara na sede dessa políciapor ordem do «Eminentíssimo Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa». A PIDEapurara que esse sacerdote tinha contactos com Manuel Serra e sabia datentativa de golpe, tendo facilitado conscientemente a entrada derevolucionários civis nos claustros da Sé. Depois do falhanço do«golpe», oferecera-se ainda para destruir papéis, e transportara um dosrevolucionários no seu automóvel até à Praça do Comércio, bem como umapequena pasta com documentos, que queimara depois em casa do seu pai.Em 21 de Maio de 1959, acabou por ser solto mediante o pagamento de umacaução de 10.000$00.
Exército versus PIDEOs oficiais militares envolvidos no «golpe da Sé», como já tinhaacontecido em outras tentativas, queixaram-se por ficar sob a alçada daPIDE, que os começou a interrogar. Ao ser interrogado peloinspector-adjunto Boim Falcão e pelo chefe de brigada Armando RodriguesRego, o major Alvarenga lamentou que, «estando como arguido de processoque corre os seus termos no foro militar», tivesse sido obrigado a ir aessa polícia prestar declarações. Os capitães Almeida Santos e FernandoRevez Romba disseram o mesmo, acrescentando o último que se sentia«humilhado como oficial do Exército por ter sido obrigado a ir à PIDE»,pois que «as declarações podiam ter sido feitos segundo o foro militar».
O ministro do Exército, Almeida Fernandes, manifestou então o seudescontentamento e, em 20 de Março de 1959, elaborou um despacho,segundo o qual era a PJ Militar que tinha competência legal paraproceder à instrução preparatória de um processo por crime contra asegurança do Estado com arguidos militares. Numa carta enviada aoinquiridor da PJ Militar, general, Manuel Lopes Pires, a PIDE informou,que, através dos interrogatórios feitos aos arguidos, se haviaconfirmado a participação de diversos oficiais, que ficariam numprocesso à parte do processo referente aos civis detidos à ordem dessapolícia. Com «a devida vénia», o director da PIDE lembrou que incumbiaa essa polícia a instrução preparatória dos processos respeitantes acrimes contra a segurança do Estado, não havendo distinção entre osarguidos civis e militares. Acrescia ainda – dizia a PIDE – que ointeresse público justificava que as diligências fossem feitas pelaúnica autoridade «especializada na averiguação dos crimes contra asegurança do Estado».
Epílogo: o julgamentoEntre os implicados do «golpe da Sé», vinte e três foram atribunal, mas, quando o julgamento começou, Manuel Serra, Amândio daConceição Silva, Francisco Mateus, Raul Miguel Marques e o major LuísCalafate estavam asilados em embaixadas latino-americanas, enquanto ocapitão Almeida Santos estava morto e Jean-Jacques Valenteencontrava-se evadido. Lembre-se que, na noite de 20 para 30 deNovembro de 1959, estes dois se tinham evadido do forte de Elvas, com acumplicidade do cabo António Marques Gil. O capitão Almeida Santosacabou por ser assassinado por razões passionais pelos outros doiscompanheiros, aparecendo o seu cadáver numa praia do Guincho, umepisódio que foi aliás tema do livro de José Cardoso Pires, intituladoA Balada da Praia dos Cães. Em 14 de Janeiro de 1961, o tribunal leu asentença dos implicados no «golpe da Sé», cujas penas não foram porémmuito elevadas, oscilando entre os três e os vinte e dois meses deprisão. Esse facto e o de muitas das penas terem ficado suspensaslevaram aliás Mário Soares, que foi então advogado de defesa deFernando Oneto, a elogiar o presidente do Tribunal e o juiz auxiliar,coronéis Rui da Cunha e Teixeira.
Implicados do «golpe da Sé» que foram a tribunal e respectivos defensores:- Augusto Pastor Fernandes, Fernando Revez Romba e Eurico Ferreira, defendidos por Eduardo de Figueiredo;
- Clodomiro Sá Viana Alvarenga, representado por Francisco Sousa Tavares e Fernando Calixto;- Amílcar Ferreira Rodrigues, defendido por Artur Cunha Leal;- Carlos de Jesus Vilhena e Pedro Navarro Bogarim, defendidos por Duarte Vidal;- Vasco Costa Santos, defendido por Luís Carvalho de Oliveira;- António Pedro Correia Vilar, defendido por João Paulo Monteiro;- Afonso Costa Santos, defendido por José Joaquim Catanho de Meneses;- Francisco dos Santos Mateus, defendido por Francisco Salgado Zenha e Mário Soares- Fernando Oneto, defendido por Mário Soares;- Manuel Serra, defendido, por João Camossa;- Jaime do Rosário Fernandes Conde e Amândio da Conceição Silva, defendidos por Varela Cid;- Raul Marques e Henrique Febrero de Queirós, defendidos por Acácio Gouveia;- Miguel da Silva, defendido por Eduardo Fernandes e Rui Cabeçadas;- Helder Pereira da Silva, defendido por Acácio Gouveia, Gustavo Soromenho e Mário Soares;- Carlos Alberto dos Santos Oliveira, defendido por Ernesto de Moura Coutinho;- António Amado da Silva Ruivo, defendido por Mário Soares e Gustavo Soromenho;- João Joaquim Gomes, defendido por Ernesto Moura Coutinho- Asdrubal Teles Pereira, defendido por Sargo Júnior.Fontes e bibliografiaArquivo da PIDE/DGS no ANTT, pr. 368/59. «Tentativa de golpe de Estado»,Arquivo da PIDE/DGS no ANTT, pr. 730 GT, Manuel Serra
Frederico Delgado Rosa, Humberto Delgado, Biografia do General sem Medo, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008
João Varela Gomes, Tempo de Resistência, Lisboa, Ler Editora, 1980Mário Soares, Portugal Amordaçado, Depoimento sobre os Anos do Fascismo, Lisboa, Arcádia, 1974————————————————-(*) Dados biográficos de João Augusto da Costa Perestrello deVasconcelos que morreu no dia 2 deste mês de Março (enviados por ArturLemos, seu amigo pessoal).
•Nasceu em Lisboa, em 1930•Frequentou o Seminário dos Olivais entre 1946 e 1952, foiordenado padre em 1953, tendo, de imediato, sido nomeado Capelão doArsenal do Alfeite.
•Participou na «revolta da Sé» (1959) contra o regime salazaristae, como consequência, esteve preso na cadeia do Limoeiro e foidesterrado para o Brasil, onde exerceu actividade pastoral tendo-lhesido, entretanto, permitida pelo Cardeal Cerejeira a frequência de umcurso de Teologia pastoral na Alemanha.
•Quando regressou do Brasil, no final da década de 60, foi nomeadopároco de Loures onde passou a residir. Militou no movimento nacional(Tribuna Livre) e internacional de padres pela aplicação do ConcílioVaticano II.
•Deixou de exercer actividade pastoral no início da década de 70e, posteriormente, a par da militância cívica e política desenvolveugrande actividade social tendo, nomeadamente, fundado, em Loures, aMisericórdia local
23.Mar.2009
Fonte AQUI
Publicado por Rui Monteiro no blogue "Causa Monárquica"
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