sexta-feira, 11 de março de 2011

A LIBERDADE E EL-REI, POR HENRIQUE BARRILARO RUAS


O poder real não pertence a El-Rei: desce sobre ele.Nada na natureza de El-Rei o está prometendo ou anunciando. El-Rei, pornatureza, tem poderes próprios de homem: físicos e espirituais, mas sóhumanos.  


1. A primeira imagemque de El-Rei se pode ter é porventura a faustosa imagem da grandeza.Assim ele anda pintado coloridamente na imaginação infantil e na detodos os Povos. E no entanto, a quem detidamente o encare, El-Reiaparecerá, por baixo da roupagem fulgurante, como homem nu de aparatos,casado com a pobreza, violentamente atirado para longe dos própriosdesejos… Se o primeiro momento da imagem nos dava um Senhor poderoso, oprimeiro momento da ideia dá-nos um servo. El-Rei é um cativo.

Quem cativou El-Rei? – o Poder o encadeia: o próprio Poder queassume. É ele que o arrasta a uma esfera que não é da sua natureza.Homem, e mais nada senão homem, tudo nele está a clamar exigências ependores comuns. E, por contraste, tudo nele se passa: não à margem doque é comum – o que seria ainda pouco – mas, dentro do comum, por ummodo diferente. A análise da vida de El-Rei manifestaria, uma a uma,mil diferenças. Todas são resultantes de uma só causa: o Poder.

O poder real não pertence a El-Rei: desce sobre ele. Nada nanatureza de El-Rei o está prometendo ou anunciando. El-Rei, pornatureza, tem poderes próprios de homem: físicos e espirituais, mas sóhumanos. O poder real é de outra ordem. Não vem da natureza: vem de Deus.

Decerto: nada do que existe tem outra origem que não seja Deus.Criada por Deus a natureza humana, não há poder natural que não venhade Deus; mas por modo indirecto. As causas segundas agemplenamente; e tudo se passa (em certo sentido) como se não existisseCausa Primeira. A esta regra se subtrai o poder político. É a este quecom perfeita adequação se aplica a fórmula bíblica: omnis potestas a Deo.

Esta ligação directa com Deus, este ter Deus como fonte imediata,faz com que o poder político pareça aproximar-se de uma esfera que nãoé política: a esfera religiosa.

Nada mais falso e nada mais grave que esta impressão sedutora! Ovínculo político enlaça com Deus o chefe, o Rei (ou, se quiserem, acolectividade, mas como um todo). O vínculo religioso enlaça com Deustodos os homens, um a um. O segundo é, o segundo não é exigido pelanatureza do ser vinculado. Religião e Política são irredutíveis.

A quem subir da ordem natural (em que o homem aspira ao Criador) àordem sobrenatural (em que, pelo mistério da Redenção, o Pai Se fezpresente ao homem e o faz seu filho), pode parecer agora que a Religiãose torna mais semelhante à Política, pois o vínculo sobrenatural enlaçacom Deus, antes de todos, o Pontífice. Mas esta semelhança formal anada conduz. O Estado é da linha da Criação. A Igreja é da linha daRedenção. Além de que, mais ainda (se é possível) que na Religiãonatural, aqui o que Deus procura é cada homem de per si, o que na ordempolítica não tem sentido.

E no entanto, apesar de bem distinta do plano religioso, a esferapolítica está mais directamente ligada a Deus que a esfera individualou a familiar (não sobrenatural) ou qualquer esfera simplesmenteassociativa.

Assim ligado ao Criador por um nexo imediato, o Rei vive uma vidaque a sua natureza não continha nem fazia prever. A sua existência nãolhe condiz com a essência. Sendo mais nobre que ela, eleva o Rei ao plano do sagrado.O sagrado não pertence apenas à ordem sobrenatural. E que outra coisaé, na ordem natural, senão aquilo cuja existência ultrapassa a própriaessência?

2. Embora, no conjunto dos poderes, vindos todos deDeus, o poder real constitua excepção; embora a Causa Primeira aqui nospareça actuar directamente, dir-se-ia tão grande a força da leiuniversal, que, olhando a certa luz, já o próprio poder político nosmostra uma origem puramente natural.

O Poder, por essência, vem de Deus . Na existência, porém, é a História – o Povo na História – que o desenha e suporta.

3. Eis, pois, El-Rei duplamente cativo do Poder.Para longe a roupagem fulgurante! Para longe a própria natureza,exigente, em humana medida, de humanas ambições… Como a água cantanteque jaz cativa, porque há-de servir para sinal de Deus; como o cordeiroque Abel sacrificou; como o pão e o vinho de Melquisedec – esse homemfoi distinguido dos outros, para ser, fora de si mesmo, numa esfera quenão é a sua, o senhor de todos: incluindo em todos aquele que ele próprio é.

Deus o cativou; a História o conserva cativo. Um vínculo, umaservidão originária, que por geração se transmite como o pecado deAdão, faz de El-Rei o homem mais despido de aparatos, companheiro dapobreza, exilado de si mesmo… Para cumprir.

II
El-Rei é um cativo: prisioneiro de Deus e da História.

E, no entanto, aos nossos ouvidos soa a palavra triunfante: Rex noster libert est.El-Rei é livre! E este é o segundo mandamento da ideia, contrastantetambém com o segundo momento da imagem, que nos daria um Rei preso poretiquetas, escravo de cortesãos ou do seu próprio orgulho…

Quem libertou El-Rei? Quem lhe quebrou as grades do cativeiro? Deuse a História (a História, de que ele mesmo é agente). Quem o cativou,agora o liberta. A servidão que El-Rei tem de cumprir; o seu cativeiroe o seu serviço consistem em ser livre. É a ser livre que Deus e aHistória o obrigam.

A sua liberdade nada tem que ver, no entanto, com a sua condição deindivíduo. Livre, sim: porém, apenas como sumário, síntese e imagem doPovo seu carcereiro. O grito de triunfo Rex noster líber est só tem um sentido: significa exactamente o mesmo que: Nos liberi sumus.El-Rei não é livre para si próprio. Não são os seus instintos, os seusdesejos, as suas tendências de homem que se libertam. Ao contrário:tudo isso se encontra sujeitado.

Para uma coisa é livre, e então plenamente, exuberantemente, loucamente: para que os seus súbditos possam afirmar, intrépidos: Nós somos livres! É esta a liberdade real: a liberdade de que está cativo.

Tão forte prisão é esta liberdade, que basta ao Rei deixar de serlivre para deixar de ser Rei. «O Rei é livre» é uma fórmula deidentidade. No dia em que a liberdade individual de El-Rei, sepultadana régia existência, revoltando-se deixar de coincidir com a liberdadecolectiva (que é a própria liberdade de El-Rei enquanto Rei), orompimento será fatal. Fatal, porque automático. Um Rei não livre é, ipso facto, um não-Rei.

III
Com os vínculos de que é prisioneiro, modela El-Rei a liberdade detodos. O seu poder é essencialmente libertador. Nele, a natureza humanaestá cativa, para que nos outros homens esteja livre. Libertador danatureza, é às liberdades naturais que El-Rei se sacrifica; não àentidade metafísica que um Humanismo unilateral imaginou. Deus suscitouEl-Rei para servir os homens; não para servir ideias.

Quatro aspectos se podem considerar no serviço político (ou poder político) que El-Rei desempenha, quando encarado sob o ângulo da liberdade:

a) Defende cada indivíduo ou cada colectividadedas abusivas intromissões alheias; está nisto o que legitimamente sepode chamar o poder moderador de El-Rei: o Rei exerce o «podermoderador» na medida em que limita ao seu âmbito próprio os poderesnaturais dos indivíduos e da sociedade, integrando-os na unidadepolítica da Nação. Aspecto negativo, nem por isso deixa de ser fecundo.

b) Por acções negativas e positivas, é próprio dopoder real garantir a cada indivíduo ou comunidade uma existênciaconforme com a sua própria essência. Aqui se manifesta em supremo graua vocação de El-Rei para libertador da natureza.

c) Pela sua segunda natureza, que é o cuidadopolítico, El-Rei dispensa do zelo geral os homens e as sociedades.Todos devem dar para o Bem Comum a sua quota-parte. Todos devem ter oBem Comum como a suprema regra natural. Bem certamente! Mas o Rei láestá, em nome de todos; substituindo, aos cuidados políticos dos outros(que, por mais constantes, serão sempre acidentais), o seu cuidadopolítico substancial, que é o seu modo de ser enquanto Rei. É comoparticipantes do poder real que os participantes hão-de participar docuidado político, do zelo geral.

A El-Rei compete escolher os súbditos, não aos súbditos escolherEl-Rei. Mas essa escolha é a dos que em união com ele devem ser, naesfera política, os promotores do Bem Comum. Nos seus planospróprios, indivíduos, famílias, corporações, municípios, rasgamentretanto os seus caminhos, escolhem democraticamente os que entre siconhecem como melhores, vivem a sua vida… Porque El-Rei se consagrou aoBem Comum, todos podem consagrar-se aos bens particulares. E de tudo resulta a harmonia da Nação.

d) Livra a Nação do caos sempre possível dospoderes desencontrados, fortalece-a, defende-a, enobrece-a. E, assim,não apenas torna possível, mas realiza, a aspiração essencial dequalquer nacionalidade: a independência. É esta, mais que todas, afunção real: dar à Nação a existência que a sua essência pede: aexistência política. A Nação é o Reino.

Deste modo cumpre El-Rei o seu destino de libertador. Ele é o quedesencadeia os poderes naturais. Mas há um poder que ele não podedesencadear: o poder sobrenatural de cada homem se tornar filho deDeus. Não o pode desencadear, porque esse poder não deriva do sanguenem da carne, mas somente de Deus. Nenhum homem tem o poder de setornar filho de Deus. Por isso mesmo, não é possível a El-Rei libertaresse poder. Não pertence a El-Rei dar liberdade ao seu Senhor. Mas Deusespera do seu servo um supremo serviço: que desencadeie o poder que ohomem tem de corresponder àquele poder divino. Assim se cumpre o ciclosagrado da existência real.

Mas… ele? Qual o destino desse homem que, ao assumir o Poder, foiassumido, absorvido, por ele? Para além da própria missão política, quecom ele morre, fica a pessoa, que no sacrifício do indivíduo encontrou a sua plenitude[1].



[1] De colaboração com Afonso Botelho foi pensado e elaborado este ensaio (1971).

Nota: não confundir o conceito cristão de “origem divina do poder” (omnis potestas a Deo)aqui afirmado -  ponto de filosofia acolhido por Henrique BarrilaroRuas  – com qualquer conceito derivado da teoria do “direito divino doreis” (detenção do poder régio por “mandato de Deus”), como foidefendido pelo Marquês de Pombal, e em geral pelos iluministas, contraa tradição da Monarquia portuguesa.

No texto de uma conferência intitulada «O Drama de um Rei» (D. Carlos I), publicada na revistaGil Vicenteem 1965, o Autor apresentou o conceito cristão de Poder Régio datradição portuguesa  – conceito adoptado pelos integralistas lusitanos– contrastando-o com as diferentes concepções da Realeza, desde asremotas civilizações pré-clássicas até à era contemporânea doideologismo (nota desta edição).

(Henrique Barrilaro Ruas,A liberdade e o Rei, Lisboa, 1971, pp. 130-137)

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