MONARQUIA E MODERNIDADE
Será o Homem naturalmente bom ou mau? Pelo menos desde Rousseau(1) que esta dicotomia divide, no essencial, a Esquerda e a Direita e, em boa parte, está na base das respectivas ideologias. Sobretudo no Ocidente, pode até dizer-se que vingou finalmente a tese da Esquerda.
Na verdade, qualquer ideia de um Homem naturalmente mau horroriza hoje não só o pensamento oficial politicamente correcto como a generalidade da opinião pública massificada. Mesmo os católicos, face aos princípios da pedagogia reinante, começam a entender mal que uma criança possa sequer nascer maculada pelo pecado original…
De resto, e apesar do aguerrido folclore partidário, a inevitável miscigenação entre as propostas político-ideológicas da Esquerda e da Direita conduziu, sobretudo a partir dos anos 50 e definitivamente após a queda do muro de Berlim, a um tão vasto consenso democrático que hoje torna praticamente impossível ao comum dos ocidentais descortinar qualquer substancial e fundada diferença ideológica entre os partidos concorrentes ao poder. Com a eventual excepção das franjas ultraminoritárias que nas pontas do espectro partidário teimam ainda na dura ortodoxia do passado.
O resultado imediato desta simbiose foi a ideia de que terminara o tempo das ideologias(2) e que começara uma nova era de opulência e bem-estar à sombra maternal do Estado-providência(3). Era agora o reinado dos tecnocratas e dos yuppies, despidos de princípios e fins mas abastados de meios, tão incapazes de uma ideia nova como exímios no partir e repartir(4) do bolo amorfo e aparentemente inesgotável da sociedade de consumo.
Só que a ideologia, entendida como um conjunto integrado de ideias que fundamentam e propõem um modelo de sociedade(5), radica na própria natureza dos homens e fundamenta mesmo o conceito de contrato social que está ou devia estar na base de qualquer comunidade.
Por isso as ideologias não morrem. O que acontece, justamente, é que do confronto entre ideologias dominantes resulta uma nova ideologia consensual, que momentaneamente aparenta o fim do confronto, mas que depressa gerará novas ideologias que a contradigam. E assim sucessivamente.
Pode então dizer-se que está cumprida a dialéctica hegeliana(6): à tese da Direita opôs-se a antítese da Esquerda, conseguindo-se já hoje a respectiva síntese. O que significa que chegou a altura de esta síntese se assumir como tese e enfrentar o contraditório de uma nova antítese, que não tem nada a ver com as velhas Direita e Esquerda e, pelo contrário, se opõe globalmente ao compósito resultante de ambas.
Com o dobrar do milénio, chegou a hora da nova ideologia da Modernidade. E a velha Monarquia – despida dos arrebiques e adaptações às exigências de idos tempos históricos e assim retornada à sua pureza inicial -, agiganta-se hoje como natural corolário da ideologia que, quanto a nós, dominará este século XXI em que entramos.
Mas quais são, afinal, as bases dessa nova ideologia? Desde logo, conforme mais detalhadamente tive já a oportunidade de explanar noutro lugar(7), o princípio da diversidade. O qual nos permite, por exemplo, responder de uma forma totalmente nova à tal questão inicial sobre a bondade ou a maldade natural do Homem, que tão centralmente dividiu as ideologias do passado.
Para começar, não existe o Homem, essa abstracção cinzenta, mas sim homens e comunidades de homens concretos. E o que é Bem para uns pode ser Mal para outros. Por isso também não existem o Bem e Mal absolutos e universais. Tudo é relativo à natureza do homem concreto e ao projecto da comunidade orgânica em que se integra. A velha questão que tanto dividiu a Direita e a Esquerda torna-se assim completamente irrelevante para a ideologia da Modernidade.
O que sobretudo importará à nova ideologia é a possibilidade de os homens se agruparem em comunidades autênticas e por isso diversas, construídas de baixo para cima, cada uma segundo a natureza e o projecto de vida comum àqueles que livremente a integram. Finalmente libertas das peias de um Estado tutelar, omnipresente e massificador, cada uma dessas comunidades orgânicas, entendidas como o conjunto daqueles que a integraram, integram e hão-de integrar, traçará assim o seu próprio destino, sem precisar de o consensualizar ou impor àqueles que com ele substancialmente divergem.
Radicalmente oposta à actual tentativa, unicista e massificadora, de criar de cima para baixo uma pretensa Humanidade standarizada, produzida em série e dócil ao dogmatismo oficial, a nova ideologia aposta na devolução da soberania ao homem concreto e ao seu grupo natural – sem o qual de resto o indivíduo não pode verdadeiramente existir -, permitindo assim o desenvolvimento de uma multiplicidade de experiências existenciais e, através delas, o apuramento orgânico de comunidades verdadeiramente diferenciadas e, na medida em que são a autêntica expressão do querer em comum, finalmente felizes.
Quebradas as barreiras artificiais do Estado jacobino, a nova ideologia propõe também o fim dos seus instrumentos políticos, nomeadamente as mega-democracias representativas, cujo princípio básico conduz, em alternativa, ao consenso desvirtuador e inconsequente ou ao domínio de uma maioria sobre uma minoria, absolutamente ilegítimo quando se trata de dirimir questões centrais na opção de vida de cada uma das partes.
Defensora da verdadeira democracia participativa, só possível em comunidades orgânicas onde todo o grupo está de acordo naquilo que é essencial, a nova ideologia, justamente porque permite o florescimento das mais díspares organizações comunitárias, exige apenas, para além do óbvio respeito pelo ambiente, recursos e natureza do planeta comum, o estrito cumprimento de dois grandes princípios universais: 1) a liberdade de cada indivíduo integrar, desde que por ela aceite, a comunidade da sua eleição, e dela se desvincular sempre que quiser; 2) a rigorosa auto-sustentação de cada comunidade e o seu absoluto respeito pelo espaço, opções e liberdades de cada uma das restantes comunidades.
Longe da actual prática política da sedução demagógica, a nova ideologia não se propõe impor a ninguém um determinado modo de vida. Pelo contrário, permite que cada comunidade se estruture organicamente à justa medida da natureza e vontade dos seus membros, desde que não interfira minimamente com a liberdade de as outras comunidades fazerem o mesmo. A não ser, é claro, pelo exemplo de sua própria opção de vida.
E, num futuro assim marcado pelo inevitável confronto entre esta nova ideologia e a actual prática dos nacionalismos estatais, das mega-democracias massificadores, da cultura do espectáculo de pacotilha e da economia da sociedade de consumo, é óbvio o papel que a Monarquia, desde já, pode e deve desempenhar.
A estratégia
Na verdade, pode dizer-se que, do ponto de vista da análise lógica, os novos tempos calçarão à Monarquia como uma luva. Mas não é certo que, na prática, isso venha a acontecer, principalmente se nada fizermos por isso. O passado está repleto de exemplos em que as coisas se passaram exactamente ao invés daquilo que devia e era lógico que acontecesse… Há, portanto, que analisar bem a realidade e definir com lucidez e coragem uma estratégia que possa irmanar a comunidade monárquica num verdadeiro projecto de futuro, aproveitando da melhor forma o sentido da História.
Desde logo, importa entender o fenómeno republicano e situá-lo no seu tempo histórico. Depois, há que escalpelizar o movimento monárquico desde 1910, detectar-lhe os erros e anacronismos mas, sobretudo, apontar-lhe as virtualidades, de forma a que nos seja possível a todos perceber o que serve e o que não serve a uma verdadeira estratégia monárquica para o século XXI. Aprendendo, porventura, com a forma como a própria Monarquia caiu.
A verdade, é que à República de 1910 bastou uma ideia velha e a sensação inefável de que chegara o tempo dela. Servida, na ponta do iceberg, por um punhado de homens onde se misturava o burguês intelectual, o operário raivoso e até o nobre desenraizado. Todos bem citadinos e ingénuos, mas voluntariosos e decididamente irmanados na inabalável convicção de que o futuro lhes pertencia. Por detrás deles, a corroer há muito o stablishment, lá estava bem infiltrada a diligente Maçonaria, avançando sabiamente as suas peças dissimuladas e preparando a jogada fatal do xeque-mate ao Rei.
A Monarquia caiu em Lisboa como se estivesse podre. Há 86 anos, uma mão cheia de republicanos decididos, primeiro na capital e depois no Porto, actuou de golpe perante a minada passividade geral, quer da própria enlutada Família Real quer da mole imensa do Povo português, tão monárquico então como republicano hoje. Com a honrosa excepção do bravo major Henrique de Paiva Couceiro, que soube bater-se na Rotunda, quase sozinho, contra o golpe republicano. «Revolto-me contra a República para salvar Portugal», disse ele, alto e bom som, pondo o dedo na ferida: «O Povo tem o direito de escolher». Mas a República nascente, suspeitando a verdade, temeu ir a votos. Só restando a Paiva Couceiro, e aos honrados portugueses que o seguiram, a restauração unilateral da Monarquia do Norte, desde logo também ela minada por dentro e desautorizada pelo próprio Rei exilado D. Manuel II.
Longo e penoso foi depois o calvário dos resistentes monárquicos. Mesmo face ao descalabro da 1ª República, mais depressa se uniram na solução política do 28 de Maio do que na solução institucional da restauração da Monarquia. Paulatinamente, a Causa Real deixou de bater-se no campo concreto e prático da acção política para passar e debater-se no espaço rarefeito e diletante da filosofia política e das convicções íntimas. O monárquico típico começou a parecer-se demasiado com aqueles poetas de fim-de-semana e das horas vagas, de pantufas, depois do expediente…
Mesmo homens tão notáveis como António Sardinha e outros, não vieram depois senão acentuar as características quase religiosas do ideal monárquico, procurando arregimentar pela razão e pela fé, mas nunca pela acção concreta. E com o tempo, ao contrário do que aconteceu por exemplo em Espanha, em Portugal interiorizou-se definitivamente a ideia, mesmo entre os mais indefectíveis monárquicos, de que a Monarquia não era uma questão actual mas antes uma consciência, um alter-ego que pode pairar bem acima e independente das opções e comprometimentos políticos de cada um.
Espécie de fado sebastianista, que haveria de voltar de motu próprio numa densa manhã de nevoeiro, a Monarquia tornou-se para os monárquicos numa referência que remete muito mais para o místico do que para o político. Mesmo depois do 25 de Abril, portanto em democracia, a acção política concreta, como bem comprovam os resultados eleitorais do PPM, nunca conseguiu unir sequer a maioria dos monárquicos confessos, quanto mais os indecisos ou potenciais apoiantes. Se exceptuarmos a Monarquia do Norte de Paiva Couceiro, quando a República levava já nove dolorosos anos de idade, toda a estratégia monárquica se tem centrado praticamente na divulgação, ora intelectualizada ora sentimental, do seu evangelho.
Mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre esta estratégia, uma coisa é certa: não conduziu nem se vê que vá conduzir minimamente à obtenção daquele que devia ser o seu objectivo, isto é, a restauração da Monarquia. Mas existiria outra estratégia possível? No passado, em boa verdade tinha sido possível aos monárquicos portugueses actuar como a própria República tinha actuado. Foi esta, aliás, a estratégia seguida em Espanha, ou seja: criar uma espécie de maçonaria monárquica e minar por dentro a República, colocando monárquicos nos lugares-chave da política, da cultura, da economia e dos media, de forma a dar, no momento certo, o golpe final e sem resistências numa República intestinamente apodrecida e desacreditada.
Entre nós, apesar de alguns se terem deixado enganar pelo canto da sereia salazarista, que vagamente lhes acenou com esta hipótese, a verdade é que nunca em Portugal os monárquicos se empenharam verdadeiramente nesta estratégia e sempre puseram os interesses imediatos das pequenas panaceias políticas à frente da verdadeira solução institucional. E hoje, em plena democracia, dificilmente esta estratégia, só por si, poderia conduzir a resultados efectivos e duradouros.
Chegamos, pois, a um momento crucial para a Causa Real. Partindo da evidência de que nem a estratégia da divulgação nem a estratégia maçónica poderão hoje, só por si, conduzir à restauração da Monarquia, põe-se inevitavelmente a qualquer monárquico minimamente realista a questão de saber o que fazer. E a opção, por muitas voltas que se lhe dê, não pode fugir desta coisa simples: ou continua tudo como até aqui, e nos limitamos a passar, muito discretamente, o facho sebastianista a cada vez mais reduzidas novas gerações de monárquicos, ou decidimos que chegou o momento de definir uma estratégia completamente nova e mais conforme à nova ideologia da Modernidade. E agir em conformidade.
Em suma, há que decidir se vamos ou não lançar os alicerces que nos permitam sagrar um Rei dos Portugueses para o novo milénio.
O sagrado
Não é fácil, contudo, mais do que gizar uma nova estratégia no espaço lógico de um raciocínio, fazê-la entender e empenhar nela todos aqueles que são indispensáveis à sua implementação. É o grande drama de todos os estrategas ou ideólogos que não tenham a seu favor a autoridade e o carisma suficientes para contrabalançar os anticorpos que qualquer ideia nova sempre cria, especialmente em quem a não teve… Tentemos, por isso, ir por partes e por exclusão de partes, assentando metodicamente os tijolos da evidência numa estrutura de alicerces segura o suficiente para daí nos podermos lançar na construção de um edifício audacioso, onde certamente o voluntarismo terá de constituir o golpe de asa que nos há-de permitir erguer algo mais do que o barracão do costume.
A primeira evidência, para além do fracasso ou anacronismo das estratégias até agora tentadas, ficou já de alguma forma aflorada: a característica muito mais religiosa do que política da ideia de Monarquia em Portugal. Religiosa será porventura uma palavra imperfeita para aqui aplicar, principalmente para quem a identificar apenas com a sua Fé católica. Não é esse, porém, o sentido que aqui importa sublinhar, mas muito mais a acepção sociológica que identifica o fenómeno religioso com tudo o que implica um comportamento individual fundado na fé de uma filosofia de vida e morte.
Na verdade, o fenómeno político centra-se ou devia centrar-se na questão de saber o que é melhor para a sociedade. Portanto, na gestão mais ou menos democrática da conflitualidade social, quer no interior dos espaços limitados chamados Estados quer na relação entre eles. No actual estádio de evolução, o valor político das coisas mede-se, no terreno, pela adesão da parte mais numerosa (em democracia) ou da parte mais forte (em ditadura). E as mega-democracias representativas, na verdade, ainda não sabem mais do que impor às minorias a vontade absolutista das maiorias. Pelo que a Monarquia só tem politicamente valor se 51% dos portugueses não só considerarem que a chefia do Estado está melhor entregue a uma Família Real, como considerarem ainda que essa melhoria é suficientemente grande para contrariar a inércia e justificar uma mudança de regime.
Mas será apenas esta questão técnica que move os monárquicos? A Monarquia, para nós, não será bem mais do que esta pequena contabilidade da eficácia da chefia do Estado? Em boa verdade, não há toda uma mundividência, uma filosofia de vida, uma mística, uma fé telúrica que inevitavelmente associamos à Monarquia? Não tem o Rei, para nós, algo de sagrado? Por outras palavras: não se assemelha o nosso monarquismo muito mais a uma fé, que temos às vezes não se sabe bem porquê, do que a uma opção política a que chegamos racionalmente pela fria análise das suas propostas institucionais? E não é esta fé inicial que depois nos leva, na tentativa de convencer os outros, a racionalizar e contabilizar as vantagens funcionais da Monarquia?
Os monárquicos foram, de alguma forma, habituados a esconder esta sua fé, este sentido sagrado e telúrico da Monarquia, e a mascará-la com complicados e infindáveis raciocínios de conveniência política, para consumo externo. Mas será que esta estratégia funcionou? A prática não o tem demonstrado… De resto, porque razão os outros haveriam de chegar racional e politicamente à Monarquia, se não foi assim que inicialmente a maioria de nós lá chegou? É que, verdadeiramente, não é monárquico quem quer; mas apenas quem é capaz de sentir esse ímpar chamamento.
Não será, pois, preferível despirmos a roupagem racionalista e assumirmos a Monarquia como quem assume uma religião, onde não se contabilizam as pequenas e grandes vantagens políticas, mas apenas a fé indizível de cada um e a alegria da comunhão com os outros crentes?
Num mundo mediatizado, onde a própria política se faz cada vez mais da sedução e do espectáculo e onde os raciocínios consequentes vão caindo em crescente desuso; num mundo onde as pessoas se sentem perdidas e desenraizadas no caos da massificação desumana e muitas caiem na tentação de se entregarem de alma e coração às mais inqualificáveis seitas; num mundo destes, não deve a Monarquia desvendar a sua natureza sagrada, telúrica, emocional e mundividente?
Como noutro lado(8) já tive a oportunidade de explicar mais detalhadamente, o futuro, das duas uma: ou não valerá a pena vivê-lo ou terá de ser forjado, de baixo para cima, pelas verdadeiras comunidades e à sua exacta medida. O abcesso jacobino do Estado terá de ser extirpado para que o conceito de Povo possa ganhar de novo a sua verdadeira dimensão. O nosso Rei desse futuro não poderá ser nunca de Portugal mas sim dos Portugueses. Porque hoje os espaços geográficos já pouco valem se neles e fora deles não vingar a identidade de um Povo. O tempo das fronteiras europeias já passou. E mesmo para quem o lamente, é estultice ficar agora a chorar sobre o leite derramado. Cumpre-nos é aproveitar da melhor forma esse novo espaço de livre circulação, para nele nos afirmarmos como Povo. Cientes de que só um Rei, como um pai, pode unir e ser referência para todos aqueles que não estão dispostos a perder o essencial, ou seja, a sua qualidade de Portugueses, cultural e geneticamente claramente identificados.
A Europa Unida – estão disso bem cientes tanto os seus teóricos como os políticos – terá de ser unida essencialmente face à vastidão incontável dos bárbaros que a ameaçam do exterior. Mas internamente, será tanto mais forte e viável quanto mais assentar na livre e pacífica convivência das identidades dos povos-irmãos que a compõem. É a diversidade destes povos que torna rica e frutuosa a sua unidade.
Pelo que, a actual tendência universal para a massificação deve na Europa, sob pena do seu estiolamento, ser desde já invertida através dum acentuar da identidade diversa dos seus povos e duma crescente autonomia e liberdade das verdadeiras comunidades, onde vá sendo possível restaurar a democracia participativa e extirpar os vícios fatais das mega-democracias representativas. E é neste processo vital que a Monarquia ganha um novo alento, porque só ela justamente remete para o sagrado e o orgânico que é a identidade e a cultura de cada Povo.
Mas tudo isto, podendo ser explicado, detalhado, somado e diminuído, tem sobretudo de ser sentido. Daí, desde logo, que a nova estratégia monárquica tenha de ganhar autenticidade, associando-lhe ao tradicional debate das suas vantagens racionalizadas a força de um movimento de adesão intuitiva e emocional, a que normalmente se chega sem muitas explicações mas com muita fé.
Sou porque sou e porque quero ser! – eis uma adesão que pela sua natureza não pode sofrer contestação e que não raro vale mais do que mil explicações.
Tudo se conjuga, neste limiar do terceiro milénio, para que as coisas se venham a passar no futuro de forma substancialmente diferente do que se passaram neste desgraçado século XX. Se nada for feito para inverter a actual tendência, aproxima-se a passos largos o inevitável ponto de rotura social, ecológica, política e económica, para já não falar psicológica. A massificação torna-se dia-a-dia mais incontrolável; os recursos, alguns tão essenciais como a água e o ar, cada vez mais escassos; o consumismo desenfreado, progressivamente mais estupidificante e dissolvente dos mais elementares valores morais e éticos; a política, cada vez mais corrupta e estúpida; o Estado, cada vez mais falido e omnipresente; enfim, a sociedade prossegue uma fuga para a frente que apenas a pode levar ao abismo.
Salva-se, neste caos alienado, sem princípios nem fins, as espantosas potencialidades do digital em particular e das novas tecnologias em geral, que poderão mesmo desvendar a curto prazo o segredo da fusão a frio e, com ela, esse futuro absolutamente revolucionário da energia virtualmente inesgotável, limpa e de graça. Apesar das leis da entropia. Mas tudo isto são instrumentos. Se abrem novas e impensáveis possibilidades, não dispensam o essencial.
E o essencial não é esse Homem abstracto que ninguém conhece, mas sim os homens concretos, cujos interesses, sonhos e opções diversas são cada vez mais sacrificados no altar daquela abstracção. O essencial não são os Estados jacobinos e as suas razões que o coração desconhece, mas sim as comunidades concretas, verdadeiros grupos afins que traçam para si o seu próprio futuro, nessa diversidade orgânica que é fonte de toda a vida e só na qual o indivíduo verdadeiramente ganha sentido.
A Comunidade
Quer isto dizer que não basta aos monárquicos defender as suas ideias e, mais do que isso, assumir explícita e publicamente a sua fé. É preciso também que se constituam numa verdadeira comunidade, capaz de se apresentar na sociedade como um grupo diverso em muita coisa mas unido na certeza de que a sua representação enquanto Povo se consubstancia na Instituição Real. Uma representação que não é política, não é administrativa, não é religiosa, mas que remete para esse indizível sagrado e telúrico que é a sua identidade genético-cultural.
Trata-se de uma ideia claramente inovadora. Por isso carece de uma análise profunda e um debate alargado, na certeza de que os contornos exactos dessa comunidade monárquica terão que ser definidos de baixo para cima, à medida dos próprios membros que a formam. Mas é possível, desde já, balizar algumas premissas e alinhar meia dúzia de ideias centrais que necessariamente terão de suportar o projecto.
Desde logo, assentar que a institucionalização desta comunidade monárquica se fundamenta sócio-politicamente na convicção, já aqui salientada e mais detalhadamente desenvolvida noutro lugar(9) de que a sociedade moderna só se poderá redimir, e reencontrar os caminhos de futuro, se souber aprofundar a diversidade e autonomia das múltiplas comunidades autênticas que a constituem. É urgente reconstruir, de baixo para cima, livremente, comunidades viáveis que reassumam o direito de traçar o seu próprio destino colectivo, desde que este não colida com o direito de outros fazerem o mesmo. A constituição desta comunidade monárquica é, portanto, um direito elementar de soberania que assiste ao Povo que a quiser integrar. Desde que, evidentemente, não a imponha unilateralmente àqueles que com ela não se identificam. Que é, justamente, aquilo que hoje nos faz a República…
O que nos remete para outra ideia igualmente inovadora: a possibilidade política e legal desta comunidade monárquica existir a par do Estado republicano, sem com ele necessariamente conflituar. Na verdade, se bem que em limite esta comunidade monárquica possa no futuro vir a ser integrada por todos os que se reclamem portugueses – o que em última análise acabaria com a República -, não é este o seu objectivo imediato.
Tal como a Igreja Católica já hoje sabe que não precisa, para existir e cumprir a sua missão, de acabar com as outras religiões ou com os agnósticos e ateus, também esta comunidade monárquica não necessita, para existir e cumprir a sua missão, de acabar com o Estado republicano. Porque o palpável e legal das funções de uma e outro não são rigorosamente da mesma natureza.
Afinal, o que é que objectiva e formalmente caracteriza a República? Não são certamente os órgãos político-administrativos, como o Governo, o Parlamento ou as Autarquias, que se podem manter exactamente iguais em Monarquia. A grande diferença está, portanto, no órgão Presidente da República, cujos poderes limitadíssimos se exercem apenas ao nível da chefia formal do Estado e da consequente burocracia institucional. Em suma, o Presidente da República é apenas o Chefe do Estado, essa coisa abstracta e sem futuro; enquanto o que nós queremos é um Rei dos Portugueses, esta coisa bem concreta a que justamente queremos dar futuro.
Um Rei, como se sabe, não governa. E se num passado próximo foi também Chefe do Estado (e daí, provavelmente, a queda de algumas Monarquias) não foi como tal que a Instituição Real nasceu nem é como tal que a queremos para o futuro. A Família Real consubstancia e é a representação personalizada dessa outra família mais vasta que é o seu Povo. Por isso não pode ser eleita, como não escolhemos o nosso pai ou a nossa família. A natureza representativa da Instituição Real, além de inalienável, remete para o Povo e não para o Estado. E essa coisa absurda, hoje muito propalada mas de clara nostalgia monárquica, de um presidente de todos os portugueses, não só é falsa e impossível como não tem qualquer fundamento político, constitucional ou sociológico.
Para os membros desta comunidade monárquica, portanto, não deve importar demasiado que o Estado seja republicano se nele não se revirem minimamente. Devem, pois, encarar o chefe desse Estado como mais um funcionário da Res Publica, como por exemplo um primeiro-ministro. O Rei, para eles, será consequentemente o seu representante pessoal no que concerne à sua identidade genético-cultural como portugueses. Trata-se desse algo telúrico e sagrado que felizmente escapa às malhas republicanas. O Rei reinará nessa comunidade porque ela própria o quer e o aceita. Sem qualquer coacção. Afinal, a mais perfeita forma de liderança.
Esta Monarquia nasce assim por livre adesão das pessoas que se querem congregar nesta comunidade e com ela constituir um corpo que se assume como tal e que pode hoje coexistir pacificamente com o Estado republicano. Nada há de mais democrático, de mais legal e, até, de mais conforme com a nova ideologia da Modernidade.
E para que serve exactamente esta comunidade? Desde logo, para congregar o Povo monárquico e, no que a ele diz respeito, permitir a restauração da Monarquia. O que será, só por si, um passo de gigante no movimento monárquico. Na verdade, para essa comunidade, se bem que despida dos arrebiques tardios do Estado, a Monarquia seria restaurada. Pelo menos no que a eles diz respeito, o Rei reinaria. E, o que não é de menor importância, o Povo monárquico estaria organizado num corpo orgânico, capaz de tomar para si as decisões que bem entendesse, cujo cumprimento pelo grupo seria livremente aceite por todos e por cada um.
Quanto ao mais, uma comunidade como esta poderia servir para tudo o que a própria comunidade quisesse fazer; desde que, obviamente, estivesse de acordo com a sua natureza e não infringisse as leis do Estado. De resto, a sua força política, social e cultural seria potencialmente enorme. Dependendo da sua vontade, esta comunidade monárquica pode, desde logo, dar aos outros o exemplo da sua portugalidade e a si própria a alegria de uma fé partilhada. Pode seguir, por adesão livre, princípios e práticas comuns de vida. Pode mesmo criar escolas e universidades. Pode defender, recuperar e divulgar o nosso património. Enfim, pode fazer um sem número de coisas simples ou importantes, pequenas ou grandes, desde que o faça em liberdade e sem contender com a liberdade dos outros. O que, só por si, já seria um magnífico exemplo…
É claro, contudo, que uma comunidade como esta não pode nem convém que nasça de absoluta geração espontânea. O seu funcionamento deve obedecer a regras claras e transparentes, da mais autêntica democraticidade, que actualizem e renovem as melhores tradições da Instituição Real e da praxis e idiossincrasia genuinamente portuguesas. A própria função do Rei tem de ser devidamente enquadrada e impõe-se a criação de mecanismos que a todo o momento garantam a representação orgânica dos membros da comunidade.
As Cortes
As Cortes, na melhor tradição monárquica, seriam porventura um dos mais decisivos instrumentos, não só para a criação desta comunidade e para a aclamação do Rei, mas também para o seu subsequente funcionamento como grupo. O próprio conceito orgânico das Cortes, mais ligado aos homens e às coisas concretas do que às habituais abstracções massificantes e estupidificadas, revela-se precioso como imagem de marca de uma comunidade monárquica. E extremamente útil aos objectivos de democracia participada em que assenta a verdadeira Instituição Real.
As Cortes prendem-se, portanto, com uma das questões que nesta fase mais importa debater, ou seja: como lançar publicamente o projecto da constituição de uma comunidade monárquica e como, no concreto, levar a cabo a sua implementação? Pondo de lado, de momento, outras considerações sobre a estratégia mediática a seguir, penso que as Cortes se apresentam de facto como a mais adequada resposta, ajustando-se até surpreendentemente aos objectivos propostos.
É óbvio que a comunidade monárquica que se pretende criar só terá sentido se for exemplarmente participada e se resultar da vontade empenhada dos seus membros. O que implica não só um processo eleitoral, em plena liberdade, como a manutenção de uma estrutura representativa que a todo o momento possa expressar a vontade das pessoas. E isto, procurando não cair nos vícios desvirtuadores da democracia representativa, periódica e de sufrágio universal. Ora, para tanto, nada melhor que o processo orgânico das Cortes, em que tomarão assento representantes das actividades e dos interesses das pessoas, bem como das áreas espaciais onde vivem, num sistema rigorosamente uninominal.
Quanto ao processo e às regras que nortearão o lançamento das Cortes, defendo que devem ser o mais simples, o mais livre e o mais desregulamentado possível. Na certeza de que as próprias Cortes, uma vez reunidas, poderão depois legislar sobre a matéria.
Em boa verdade, quer o processo de constituição das Cortes quer o normal funcionamento da comunidade monárquica vão exigir muita inteligência, muito tempo e muito trabalho, o que dificilmente se compadece com o habitual amadorismo que reina nas actividades monárquicas. Seria, pois, importante considerar a hipótese de profissionalizar uma estrutura mínima, cuja dimensão exacta dependeria da conjugação das necessidades com os meios disponíveis.
Escusado será referir, de resto, o impacto mediático que um projecto deste tipo há-de suscitar É portanto fundamental estabelecer uma estratégia rigorosa no que respeita à mensagem que convém transmitir na sua fase de lançamento. Seria assim de toda a conveniência que, para o efeito, fosse criado um jornal, de preferência um semanário, cuja qualidade garantisse o duplo objectivo de meio de comunicação e de auto-sustentação económica.
Aliás, a questão da viabilidade económica do projecto é fundamental e vai requerer a elaboração de um aturado estudo sobre o assunto. Desde já, contudo, é possível salientar a importância económica de que se poderá revestir a existência de uma comunidade monárquica organizada, que à partida julgo poder integrar mais de um milhão de pessoas, já que todas as sondagem referem a existência em Portugal de pelo menos 10% de monárquicos.
Considerada como mercado potencial, esta comunidade tem um enorme valor, que com ciência e arte se pode rentabilizar de muitas formas, e que à partida já constitui um crédito considerável. Muito embora isso necessariamente dependa de uma decisão a tomar pelas futuras Cortes, é também possível desde já perspectivar o poder económico dessa comunidade monárquica e pensar na possibilidade de um imposto (quota), livremente aceite, correspondente por exemplo a 1% do rendimento anual de cada membro. E só com isto estaríamos porventura a falar de um orçamento anual superior a dois milhões de contos. O que nos permite pensar este projecto com uma dimensão insuspeitada.
Existe ainda a enorme potencialidade económica de certos círculos da emigração, especialmente fora da Europa. O conceito de Rei dos Portugueses, claramente desvinculado do Estado, diz muito à emigração. Deve-se, a propósito, ter o máximo cuidado com a questão do ex-Império. É um assunto delicado, principalmente em meios mais passadistas. Contudo, a verdade é que, em rigor e na melhor tradição monárquica, uma coisa são Portugal e os portugueses e outra bem diferente os territórios e os povos que integravam o Império colonial. A ideia ridícula de uma nação pluricontinental e pluriracial é uma invenção republicana, mais concretamente salazarista, sem qualquer fundamento no ideário monárquico e que entra em clara contradição com a singela beleza e total modernidade do conceito de Rei dos Portugueses.
Enfim, quanto a uma resposta cabal à questão de saber para que, concretamente, vão servir as Cortes, e por extensão a comunidade monárquica, obviamente não me é possível dá-la aqui. Pela simples razão de que ambas servirão exactamente para aquilo que as pessoas que as consubstanciam quiserem, souberem e puderem fazer. A ideia das Cortes convoca justamente a saudável diversidade do povo monárquico. E fá-lo em nome daquele denominador comum que afinal o congrega numa comunidade. Tão simples como isto.
Resulta assim evidente a imperiosa necessidade de separarmos o essencial ou estrutural do acessório ou conjuntural. Para, por um lado, não nos perdermos a discutir bagatelas ou modismos e, por outro, cimentarmos num referencial de futuro tudo aquilo que verdadeiramente importa à Monarquia e a distingue como um valor tendencialmente perene.
A verdade é que este trabalho está basicamente por fazer. E nunca, estou convencido, poderá ser devidamente feito apenas com o contributo inestimável desse punhado de incondicionais que vêm carregando com dedicação e esforço o pendão real.
Para tanto, parece-me indispensável convocar todo o povo monárquico, em toda a sua luminosa diversidade, para que, em conjunto com o Rei que o une e simboliza, possa globalmente dar resposta cabal à magna questão da essencialidade monárquica. E, mais do que isso, vivê-la em conjunto, organicamente.
Aqui importa, portanto, assentar sobretudo no valor instrumental, estruturante e simbólico das Cortes. E agir em conformidade, ou seja, procurarmos no fundo da nossa alma monárquica o alento e a coragem necessários para levar avante, com inteligência e rigor, um projecto de tamanha dimensão.
Se este deve ser para os monárquicos um tempo de ideias, é preciso que seja também um tempo de acção conjugada, diligente e continuada. Os rompantes de entusiasmos, por deliciosos que sejam, são como água derramada: logo se somem nos interstícios das circunstâncias adversas… Falta-lhes justamente um recipiente que os receba, os integre e verdadeiramente os potencie num projecto. E as Cortes podem e devem ser também, exactamente, esse recipiente que nos falta.
O Rei
O casamento de S.A.R. o duque de Bragança, herdeiro dos Reis portugueses, veio na verdade viabilizar todo este projecto, doutra forma claramente coxo e inconsistente. Este feliz acontecimento, ao mesmo tempo que arredava todas as enormes preocupações com a questão da sucessão dinástica que consumiam os monárquicos, veio tornar completa a figura do Rei, que só verdadeiramente se dimensiona quando conjugada com a da Família Real.
Por outro lado, ao escolher para mulher uma portuguesa, S.A.R. o duque de Bragança soube integrar-se da melhor maneira no novo papel que hoje, principalmente na Europa Comunitária, cabe às Famílias Reais. Na verdade, este novo conceito de Rei exige uma grande identidade com o seu Povo, inclusive na questão central da carga genética. Já lá vão os tempos em que os Reis europeus formavam uma espécie de família única, uma casta à parte, geneticamente muito distanciados dos respectivos povos. O que, estou em crer, terá mesmo levado alguns deles ao exílio…
Mas uma coisa é ser herdeiro de Reis ou pretendente ao Trono, e outra bem diferente e muito mais difícil e exigente é ser Rei dos Portugueses. E é este grande passo que devemos pedir a S.A.R. o duque de Bragança que faça o sacrifício de dar, a bem do seu Povo. Claramente conscientes de que, para tanto, também muitos de nós nos temos de sacrificar, ajudando a criar as condições institucionais e operacionais para que isso seja possível.
Desde logo, acompanhando, enquadrando e sustentando a sua actividade institucional, cuja importância e requisitos formais exigem não só uma outra atitude pública, como uma maior articulação com os órgãos que constitucionalmente devem acompanhar e fiscalizar a acção do Rei.
Reinar é, de facto, uma missão difícil, por vezes mesmo ingrata, que exige sempre uma total entrega pessoal à coisa pública. Alguns maus exemplos recentes de Famílias Reais estrangeiras advêm justamente de uma má compreensão das obrigações reais, nomeadamente daquela, talvez a mais difícil, que conduz à anulação do ser indivíduo face às exigências do ser símbolo, afinal sagrado. Obrigação que se estende a toda a Família Real, essa verdadeira matriz institucional. De resto, é precisamente por se tratar de uma Família talhada ao longo dos séculos para esta missão que ela é Real.
Mas este passo, por difícil que seja, impõe-se hoje mais do que nunca. Modernamente, o Povo Português precisa muito mais de um Rei do que de um Reino; mesmo que esse Rei o não seja para todos os portugueses. Até porque, enquanto se mantiver vivo e actuante, bastará esse núcleo duro para garantir às gerações vindouras que se não perderá, derramado na massificação europeia e ocidental, essa estranha e única natureza de ser Português de raça.
E o seu exemplo, a sua conduta, a sua autenticidade, enfim, a sua alegria de ser em comum, certamente granjeará a essa comunidade monárquica muitos mais adeptos do que até aqui o conseguiram mil e um discursos.
Por outro lado – é preciso não o esquecer -, nenhum Povo verdadeiramente sobrevive sem elites. E se as elites, à imagem do Rei, têm por missão servir e abrir caminho aos outros, é preciso que sejam formadas neste quadro de referências.
E talvez a missão mais sublime a que essa comunidade monárquica esteja destinada seja justamente a de educar e preparar os Portugueses de amanhã. Sem nacionalismos bacocos e ultrapassados (fundamentalmente de raiz republicana), mas intransigentes na nossa autenticidade e no nosso direito à diferença.
Os monárquicos devem sobretudo valorizar o essencial daquilo que os une. E dar, ao muito que naturalmente os separa, o valor fundamental da diversidade. Transformando mesmo este respeito pelo diverso numa das grandes bandeiras da Monarquia.
Valorizar o denominador comum torna-se assim, mais do que uma simples medida de bom senso, uma verdadeira estratégia de actuação monárquica. No exacto contraponto a esse arreigado amor pela liberdade de todos e de cada um que, apesar das aleivosias do historicismo jacobino e marxista, ao longo dos séculos fez da Monarquia o mais humano dos regimes políticos.
Conforme já escrevi noutro lugar(10), S.A.R. o Sr. D. Duarte, ao contrário do que alguns supunham, tem conseguido desenvolver muito bem uma das mais importantes vertentes que considero ser do papel de um Rei moderno: o contacto emocional com o Povo e a capacidade não só de espelhar a forma de ser e estar desse Povo, mas sobretudo de representar perante ele o intangível e sagrado da sua própria identidade.
Dito doutra forma, o Rei tem de ser pai e tem de ser símbolo. E S.A.R. conseguiu sê-lo, granjeando um impressionante capital de simpatia e empatia com a generalidade do povo português. Partindo de uma posição claramente desvantajosa, soube entrar no coração das pessoas e aí permanecer como uma referência simultaneamente familiar e telúrica. Como é habitual em pessoas que no fundo nasceram para reinar, pode dizer-se que a intuição de S.A.R. funcionou aqui perfeitamente.
Mas o Rei tem também tem de ser elo. Sobre a indispensável diversidade democrática, o Rei tem de conseguir ser aquele mínimo denominador comum que congrega o grupo e justamente cimenta organicamente a comunidade como tal.
E aqui, como a História demonstra, não basta a intuição real. O objectivo é difícil de atingir e requer não só trabalho e estudo permanentes mas também aturadas decisões políticas, na mais nobre acepção da palavra. Ou seja: aqui o Rei não pode dispensar a colaboração institucionalizada dos monárquicos mais capazes; aqueles que, como diria Camões, por feitos e obras valorosas se vão da lei da morte libertando.
A política
Se é verdade que a instituição monárquica está, por definição, acima das lutas político-partidárias, disso não devemos inferir que é possível preparar a Restauração sem um aturado trabalho político e, sobretudo, sem uma visão política integrada e coerente sobre as grandes questões que hoje se põem, de uma forma prospectiva, à sociedade portuguesa em particular e à sociedade europeia em geral.
Há, pois, que fazer política; não só sobre o conjunto de questões que directamente dizem respeito à Monarquia, mas também sobre todas aquelas outras questões que possam contrariar ou favorecer o nosso ideal. Ou seja: há que estar atento e actualizado e ser actuante.
Desde logo, há que inverter a ideia generalizada de que a Monarquia é um atavismo anacrónico que, por razões próximas do folclore, alguns países se dão ao luxo de manter. Pelo contrário, é necessário que as pessoas passem a associar a Monarquia a um movimento de vanguarda, pleno de modernidade, que nada tem de passadismo mas que, quando muito, é demasiado avançado para os mais reaccionários.
Conforme já referi noutro lugar(11), por muito convencional que a data possa ser, o 3º milénio transporta consigo algo de mítico e renovador que de algum modo predispõe as pessoas para a mudança e até lhes cria o sentimento dessa necessidade. Mas a mudança monárquica?
Se alguma coisa caracteriza o final do séc. XX, são seguramente três coisas: as novas tecnologias, sobretudo da comunicação; a concentração das superestruturas político-administrativas e económicas em grandes núcleos sinergéticos transnacionais; e a massificação social, que tende a transformar-nos a todos num mercado consumista tipificado, mais ou menos alienado e sobretudo movido pelos sentimentos.
Trata-se, contudo, de uma trilogia instável, na medida em que um dos seus vectores, as novas tecnologias da comunicação, se permitem, também combatem quer a concentração quer a massificação. Na verdade, essas novas tecnologias funcionam aqui como um factor autocorrectivo, afinal indispensável à própria sobrevivência do modelo, numa dialéctica permanente, eu diria pós-hegeliana.
Assim sendo, é-nos possível antever as linhas mestras que determinarão o futuro e, por isso, intervir no seu desenvolvimento com a eficácia resultante da capacidade que tivermos, a todo o momento, de aproveitar a vaga da História em vez de remar contra a maré.
Não cabe aqui uma análise minimamente detalhada desta problemática. Mas, justamente, a falta de espaço-tempo é uma das características da comunicação moderna, imposta não tanto pelos meios mas sobretudo pelos receptores, verdadeiramente bombardeados com um volume de informação muito superior àquele que conseguem absorver.
Tendo tudo em consideração, a estratégia monárquica tem de pautar-se pela coerência interna e fácil compreensão/adesão sentimental do modelo proposto, pela reacção à concentração/massificação e pela aposta na diversificação/subsidiariedade. Aproveitando as potencialidades das novas tecnologias da comunicação, deve afinar o seu discurso geral ao perfil-tipo do receptor moderno e o discurso específico aos “nichos” naturalmente predispostos a uma mudança que combata ou contrabalance os efeitos nocivos da concentração/massifcação, especialmente sentidos ao nível da liberdade/diversidade dos grupos. Em suma: a Monarquia tem sobretudo de ser libertadora.
Por outro lado, mais do que teorizar políticas, os monárquicos devem acima de tudo mostrar ao país que são capazes de implementar na prática as suas ideias. E daí, desde logo, a necessidade de avançar com a institucionalização da comunidade monárquica.
Mas não só. Os monárquicos têm, antes do mais, de se demarcar claramente da figura do cortesão e assegurar que no interior do próprio movimento, enquanto tal, vigoram os princípios-base de diversidade e da democracia orgânica e participada. Ou seja: as grandes directrizes políticas do movimento têm não só de garantir como fomentar, a todo o momento e em todas as circunstâncias, a diversidade de opiniões, a participação nas decisões e a representatividade devidamente legitimada.
E desta constatação resulta de imediato a noção de que, mesmo antes da eventual institucionalização das Cortes, os monárquicos devem criar um Conselho que os represente e que, por isso mesmo, se venha até a pronunciar sobre a oportunidade da própria institucionalização das Cortes.
Este Conselho da Comunidade Monárquica – com este ou outro nome – deveria assim constituir-se como uma primeira plataforma de representação dos monárquicos portugueses, independentemente de serem ou não militantes nas Reais Associações.
Conforme já noutro local referi(12), há entre 10 e 15 por cento de portugueses que se declaram monárquicos às várias sondagens e inquéritos que têm abordado esta questão. Ou seja, extrapolando estes números: cerca de um milhão e meio de pessoas, mesmo sem o benefício de uma campanha eleitoral, dão livremente o seu testemunho de amor ao Rei. Contudo, se olharmos para a exígua militância monárquica, não podemos deixar de nos perguntar: mas afinal onde está essa gente toda?
Ninguém os viu, mesmo nos momentos mais altos da vida monárquica recente, como o casamento de S.A.R. o Senhor D. Duarte ou o baptizado de S.A.R. o Senhor D. Afonso. Dir-me-ão que estes eventos procuraram sobretudo cativar a República e não, como a meu ver deveriam ter feito, reunir em festa o povo monárquico. É verdade; mas também não sei se teria sido possível convocar, por exemplo no Santuário de Fátima, um milhão de monárquicos para o casamento do duque ou o baptizado do príncipe. Embora, creio, tivesse sido importante tentá-lo.
Como quer que seja, parece evidente que existem muito mais monárquicos do que aqueles poucos que costumam aparecer nas coisas da militância. O que não deixa de ser normal, se considerarmos que a militância dos grandes partidos não chega a 1% dos respectivos votos. O erro estará, justamente, em querer transformar esse milhão de monárquicos em militantes.
O que, além do mais, significa, como ficou dito, a necessidade de uma nova estratégia nacional que dê corpo e alma a essa comunidade monárquica em potência, que até agora tem estado desagregada e que das estruturas monárquicas, em boa verdade, não tem recebido mais do que críticas pela sua alegada falta de empenhamento. A Real do Porto, contra ventos e marés, tem procurado lançar este debate e, o que é mais, empenhar todos os responsáveis, a nível nacional, num projecto consequente, articulado e, sobretudo, democrática e descentralizadamente orgânico. Infelizmente, pelo menos até agora, sem o necessário sucesso.
Justamente porque, na minha opinião, esses responsáveis ainda não perceberam que a esmagadora maioria desse milhão e meio de monárquicos não quer ser militante de coisa nenhuma. Basicamente, um pouco até por definição, são pessoas inteligentes, práticas, necessariamente empenhadas nas suas vidas e nas suas carreiras, que vêem a Monarquia não como um serviço ao Rei mas justamente o contrário: um regime onde o Rei serve o seu Povo.
Ora, esta é precisamente a essência da Monarquia. Donde, o mais importante não é pedir militância a esse milhão e meio de monárquicos. Ao invés, é formar com eles essa tal verdadeira comunidade, onde o grande militante seja, por definição, o Rei.
Dito de outra forma: S.A.R. o Senhor D. Duarte, certamente consciente de que chegou o momento de dar um passo em frente, em direcção à Restauração, não deixará de abraçar o esforço conjugado dos monárquicos na criação de uma estrutura, esse tal Conselho da Comunidade Monárquica, que terá o duplo e fundamental papel de representar o Povo monárquico e assistir o Rei na construção e desenvolvimento do projecto comum da Restauração.
Pode assim dizer-se que este Conselho teria como principal missão a representação, digamos política, da Comunidade Monárquica, que desta forma ultrapassava finalmente o seu actual estatuto virtual. E daqui lhe nasce outro objectivo de igual importância: assistir S.A.R. em todas as matérias de relevância política e dar-lhe, a todo o momento, a mais exacta medida do sentir diverso e plural da comunidade que politicamente representa.
Donde resulta, desde logo, uma exigência na sua génese: a sua emanência de baixo para cima, consubstanciada num processo eleitoral alargado a todos os que, assumindo-se monárquicos, por um lado nele quiserem votar e, por outro, a ele quiserem concorrer.
Mas, sejamos práticos. Conforme já tive a oportunidade de salientar(13), a recente experiência referendária veio levantar uma questão que de sobremaneira importará aos monárquicos. Tendo sobretudo em conta que a maioria defende a via do referendo como única forma de restaurar a Monarquia em Portugal. Centrando mesmo toda a estratégia de acção monárquica neste objectivo e na exigência da necessária alteração da Constituição da República.
Julgo, contudo, que os resultados dos dois referendos até agora realizados vierem demonstrar a impossibilidade prática de algum dia se restaurar a Monarquia desta forma. Desde logo, pela falta de participação: em nenhum dos dois referendos votaram mais de 50% dos eleitores, o que retira aos resultados qualquer valor vinculativo. E o valor político de uma maioria simples não seria nunca suficiente, até do ponto de vista jurídico, para que a República se auto-extinguisse.
Mas, mesmo uma maioria simples parece-me que está absolutamente fora do alcance da Monarquia. Como se verificou no referendo sobre a regionalização, não é possível colocar à consulta popular assuntos tão complexos. A maioria da população pura e simplesmente não tem nem a capacidade nem os conhecimentos para poder verdadeiramente opinar sobre questões que ultrapassam em muito a sua experiência.
E o resultado esteve à vista: por um lado, a feira da demagogia torpe e desinformativa; por outro, o medo da mudança e a colagem ao sentido de voto imposto pela disciplina partidária. E todos sabemos como é fácil, aos republicanos em geral e aos interesses partidários em particular, armadilhar qualquer discurso sério sobre as vantagens da Monarquia. Como foi fácil fazê-lo contra as regiões, ao ponto de muitos monárquicos, por exemplo, nem chegarem a equacionar o facto de a grandeza da nossa Monarquia pré-Mouzinho da Silveira muito ter ficado a dever, justamente, à sua organização administrativa regionalizada em cinco províncias (Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura e Alentejo) e um reino (Algarve).
Em suma, é bom que os monárquicos atentem nesta experiência e procurem rapidamente elaborar e sistematizar estratégias alternativas à miragem do referendo. Porque as há, e a RAP já apontou algumas. A questão é juntar a suficiente massa crítica de empenhamento…
O referendo sobre o regime não pode, assim, ser um ponto de partida mas apenas um formal ponto de chegada. A Restauração no novo milénio vai requerer um aturado trabalho, que, como ficou dito, se deve iniciar com a institucionalização da comunidade monárquica, do seu parlamento, as Cortes, e da sua direcção política, o Conselho Monárquico, por ele democraticamente legitimado. E, paralelamente, com a aclamação de S.A.R. o Sr. D. Duarte como Rei dos Portugueses, senão imediatamente de todos, pelo menos daqueles que desde já assim o reconhecem e que justamente constituem a comunidade monárquica.
Com este passo, S.A.R. deixará de ser o particular que hoje é, com tudo o que isso permite de liberdade individual, para se assumir como Rei, com todas as obrigações e o enquadramento institucional próprios da função. De resto, suponho que todos os monárquicos consideram fundamental este tirocínio. O passo seguinte a caminho da Restauração exige que, desde já, S.A.R. se integre no quadro constitucional próprio das Monarquias modernas, introduzindo assim no seu comportamento público a vertente do querer, democraticamente estabelecido, do seu Povo.
Depois, obviamente, será essa estrutura da simbiose Rei/Povo a determinar o caminho a seguir. O que não impede que, desde já, se façam aqui algumas considerações de ordem estratégica. Ou seja, tentar responder à questão central que trata de saber o que é necessário fazermos em prol da Restauração.
Parece-me evidente que qualquer estratégia que assente apenas numa base de apoio tradicionalista e num discurso populista está destinada ao fracasso. E a prova, salvaguardando as devidas distâncias, está por exemplo na incapacidade de o CDS/PP ultrapassar o estatuto de pequeno partido.
Os monárquicos não podem teimar nesse beco sem saída, tanto mais que a sua natureza nem é partidária nem, como vimos, pode ser tradicionalista. Os tradicionalistas e conservadores de hoje são os republicanos. Nós queremos a mudança, mas uma mudança claramente de futuro, que pouco ou nada tem a ver com a Monarquia que caiu em 1910.
Assim sendo, parece evidente que temos de apostar sobretudo em quatro grupos sociológicos distintos, e por esta ordem: os líderes de opinião, a juventude, a intelectualidade e as massas populares. E, como é evidente, temos de saber comunicar com cada um destes grupos, ou seja, ajustar o discurso a cada um
destes arquireceptores.
Para tanto, é necessário, desde logo, que o movimento monárquico, como já referimos, extravase as suas actuais fronteiras da militância e ganhe a massa crítica que a tal comunidade institucionalizada lhe garantirá. Depois, como um acto de livre vontade dessa comunidade, tem de saber angariar, directa e indirectamente, o orçamento mínimo indispensável à acção. E, a par disso, institucionalizar uma direcção política, devidamente legitimada, capaz de orientar e articular uma estratégia de curto, médio e longo prazo.
E as acções que imediatamente julgo que se impõem, tendo em conta os referidos grupos-alvo, prendem-se sobretudo com o ensino, a produção intelectual e artística e a comunicação social. Ou seja, tal como a Igreja fez uma Universidade Católica e mantém inúmeros estabelecimentos de ensino primário e secundário, também nós devemos criar uma Universidade Monárquica e escolas de nível inferior com a mesma orientação. Devemos igualmente criar uma Fundação cujo objectivo seja apoiar a criação intelectual e artística que de alguma forma se enquadre nos nossos objectivos estratégicos. Finalmente, temos de lançar um jornal diário, uma estação de rádio e, se possível, um canal de televisão que, muito embora mantendo os seus objectivos profissionais e económicos de órgãos de comunicação viáveis, tenham das coisas e do mundo uma perspectiva monárquica, ou seja, assente nos valores do nosso denominador comum.
A Nobreza
A questão da Nobreza é incontornável quando se fala de Monarquia. É ideia, aliás, que está muito mais na cabeça dos que ainda estão de fora do que propriamente na dos monárquicos. Mas tanto basta para que o assunto não possa ser aqui esquecido, pois essa lacuna poderia dar azo aos mais disparatados mal-entendidos.
Convém aqui, desde logo, tornar claro que, com ou sem reconhecimento oficial, a Nobreza portuguesa existe e existirá sempre. A República, de resto, cada vez se mostra mais deslumbrada com a antiga Nobreza, verdadeira ou falsa. E criou ela própria uma “nobreza” republicana, política e plutocrata, que normalmente se caracteriza por ter muitos privilégios e nenhuns deveres…
A Monarquia, tal como a República, não tem poder para negar os direitos históricos e a natureza da Nobreza antiga. Porque a única forma de o fazer é eliminá-la fisicamente, barbaridade que nem a nossa República cometeu. A questão, portanto, é a de saber se a Monarquia deve manter cristalizada e portanto anacrónica essa Nobreza, tal como fez a República, permitindo assim o surgimento, sem rei nem roque, de uma classe plutocrata, exibicionista e consumista, sem qualquer sentido social de serviço e de vanguardismo e, portanto, verdadeiramente inútil.
Em suma, a questão reduz-se a saber se a nossa Monarquia, tal como fizeram e fazem as Monarquias europeias, deve enformar um corpo de elite, constantemente aberto a todas as emergências, que não fique cristalizado no passado nem virado para o seu próprio umbigo, mas que verdadeiramente esteja ao serviço do desenvolvimento dos portugueses em particular e da portugalidade em geral.
Conforme já confessei(14), não me encontro no número daqueles que se esforçam por afastar a Monarquia de toda e qualquer ideia de elitismo. E isto, basicamente, primeiro porque considero que a criação de uma verdadeira elite nacional talvez seja a mais urgente tarefa da modernidade e, segundo, porque só a instituição real me parece estar em condições de o fazer devidamente.
Para que não subsistam confusões, é bom avisar desde logo que elite não é, nem pode ser por definição, um jet set plutocrata e consumista, ou um grupo de sobranceiros e diletantes privilegiados ou, sequer, uma Nobreza de sangue bolorenta e medíocre. A elite, na verdade, é uma massa crítica dos melhores, ou seja, daqueles que seguem na vanguarda do caminho comum e que, pelo seu exemplo e pelo seu serviço, se dispõem, na medida das suas maiores capacidades e/ou educação, a enformar o desenvolvimento global e interactivo da comunidade. Sendo certo que, até por uma questão de eficácia social, esta elite deve ser devidamente assinalada e reconhecida como tal.
A actual sociedade portuguesa, sem de resto com isso fugir à regra ocidental, parece cada vez mais dividir-se entre aqueles que fazem o espectáculo, seja ele político, televisivo, musical ou doutra ordem, e com isso enriquecem, e aqueles que pagam e que assistem a esse mesmo espectáculo, num círculo vicioso de degradação mútua.
Encurtando razões: nenhum dos grandes meios de comunicação de massas, pela sua própria natureza, está em condições de auxiliar o desenvolvimento cultural dos portugueses. Pelo contrário, esse circo de audiências puxará e será puxado cada vez mais para baixo. Na verdade, deseducará; pois o seu objectivo é apenas e tão-só entreter as massas, quanto mais alienadas melhor.
A educação e a cultura não se compadecem com este imediatismo. Por isso, só uma elite devidamente formada e consciente da sua missão pode, pelo serviço do exemplo, inverter este plano inclinado em que hoje escorregamos. Mas esta elite não pode ser política, ideológica ou mesmo intelectual. Tem de ser uma elite eu diria integral, forjada no cadinho milenar da História. Só assim será verdadeiramente nacional e orgânica.
E julgo que só uma Monarquia está em condições de enformar essa elite, salvaguardando sempre a liberdade e a diversidade, sem o que nenhum verdadeiro desenvolvimento é possível.
Pelo que se pode concluir que esta é mais, e não menos, uma razão para defender a Restauração.
As Reais
Cabe inegavelmente às Reais Associações e à sua federação, a Causa Real, liderar e implementar todo este projecto. Sem qualquer receio de secundarização e muito menos de que novos órgãos lhe venham tirar espaço ou influência. Desde logo, porque as Reais Associações e a sua federação não são um fim em si mesmo mas um meio, um instrumento, para se alcançar a Restauração, após a qual, de resto, perdem algum sentido.
Às Reais cabe dinamizar regionalmente as comunidades monárquicas, potenciando as suas energias endógenas em prol de um movimento que se quer levar a toda a gente, sobretudo à juventude. Mais: cabe-lhes enquadrar o melhor possível a participação dos seus associados, enquanto tal, na vida política das suas regiões, quer em associações e movimentos de opinião pública de vária ordem, quer nas próprias autarquias.
Questões que em boa medida atravessam horizontalmente as formações políticas partidárias e constituem verdadeiramente assuntos da cidadania, devem merecer uma tomada de posição dos monárquicos enquanto tal. Se bem que em teoria a unanimidade seja naturalmente impossível em matérias como estas, convém não esquecer que os monárquicos enquanto tal (e não apenas enquanto cidadãos, eventualmente até ligados a um partido político) estão numa situação especial, desde logo porque se devem sobretudo preocupar com uma estratégia que sirva os seus objectivos de Restauração.
Aceitar o irrecusável para podermos centrar as nossas energias no que nos é possível mudar, eis uma regra estratégica que os monárquicos deviam sempre prosseguir.
Vejamos um exemplo: conforme já tive a oportunidade de referir noutro local(15), o federalismo europeu, de que a moeda única foi mais um passo, conduzirá seguramente ao desprestígio e fim dos Estados jacobinos nacionais tal como hoje são entendidos. E os povos irmãos da Europa terão portanto, contra a indesejável alternativa da massificação unicista, de se reencontrar com os respectivos Reis, a única instituição que verdadeiramente pode, no actual ambiente dissolvente e altamente entrópico, salvaguardar a identidade dos respectivos Povos. Podemos, portanto, dizer que a Monarquia será uma garantia da portugalidade no 3º milénio.Por isso, os monárquicos devem ser o mais federalistas possível. E se aquelas razões lhe não chegaram, há outras que qualquer Maquievel facilmente lhe apontaria. Ou seja: devem defender aquele futuro previsível e irrecusável que melhor serve o seu monarquismo.
E o que se passa com o federalismo acontece por exemplo com a regionalização, essa verdadeira machadada, agora dada por baixo, no mesmo Estado jacobino, republicano. Os monárquicos, principalmente aqueles que permanecem presos à velha dicotomia Esquerda-Direita, devem perceber o mais rapidamente possível que a regionalização, para além de estruturalmente monárquica, serve à causa real como uma luva.
Eu sei que esta liberdade de espírito nem sempre é fácil para os que foram educados na chumbática ideologia salazarista e que, de então para cá, se fartaram de assistir a muita imbecilidade. Mas é por isso que a Monarquia pode ser redentora mesmo no plano individual: justamente na medida em que permite o salto estruturante com baixos custos de entropia.
São este tipo de questões – uma vez definida a estratégia política pelo Conselho e, numa eventual segunda fase, pelas Cortes -, que devem preocupar e motivar a acção das Reais Associações, a par e simultaneamente com a divulgação do ideal monárquico.
Já o Conselho da Comunidade Monárquica (e a sua eventual 2ª fase, as Cortes) têm uma natureza completamente distinta. Com efeito, as Reais Associações e a sua federação são ou deviam ser sobretudo um instrumento de acção dirigida para o exterior. Em muitos aspectos, teriam uma vocação muito próxima da dos partidos políticos.
O Conselho, pelo contrário, está sobretudo virado para as questões internas da comunidade monárquica e da própria Instituição Real. Representaria não apenas algumas centenas de filiados mas os milhares, senão milhões, que consubstanciam o Povo monárquico no seu conjunto. Com funções muito específicas, que justamente começamos agora a definir, mas que sobretudo se prendem com a filosofia e estratégia políticas, o conselho a S.A.R. e a representação democrática da comunidade monárquica. O Conselho (e depois as Cortes) seria, enfim, um órgão da própria Monarquia.
Às Reais Associações e à sua federação, a Causa Real, cabe pois a condução e implementação das estratégias propostas. Passando, obviamente, à fase dos pormenores tácticos e logísticos que seria despropositado aqui e agora esmiuçar e calendarizar. Mas para tanto – infelizmente há que dizê-lo -, não pode o movimento monárquico perder-se em querelas estéreis de capelinhas ou de politiquices republicanas. A História está cheia de exemplos de oportunidades falhadas porque faltou, aos homens de que se esperava a indispensável liderança, a capacidade de se elevarem acima das tricas internas e assim conseguirem motivar todos e cada um na obra comum que se impunha. E o futuro não nos perdoará se o não fizermos.
Como diria Fernando Pessoa: É a Hora!
PORTO, 1999
5 Ideologia tem hoje geralmente este significado, muito embora o termo tenha sido criado pelo filósofo francês Desttut de Tracy (1754-1836) para designar a ciência que tem por objecto o estudo das ideias no sentido geral de factos da consciência.
7 Vide «Estado de Coma», Porto 1995, de Manuel Abranches de Soveral, Diogo Pacheco de Amorim, João Afonso Machado e Rui Marrana.
Texto de: Manuel Abranches de Soveral
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