domingo, 10 de abril de 2011

OS MONÁRQUICOS E AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1958, JOSÉ MANUEL QUINTAS


O Estado Novo, regímen misto, feito de duas camadas sobrepostas, tem quase sempre por cima a camada antidemocrática. Mas de 4 em 4 anos e de 7 em 7 anos vem ao de cima a camada democrática. Recalcada durante tanto tempo, não admira que venha impetuosa e um tanto descomposta…

Henrique Barrilaro Ruas, em entrevista ao Diário Popular, 1957.

1. Os monárquicos e o Estado Novo de Salazar.

Numa célebre fotografia tirada em 10 de Maio de 1958, durante a sessão pública de apresentação da Candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República, no Café «Chave de Ouro», em Lisboa, pode ver-se Luís de Almeida Braga sentado à direita do general, Francisco Rolão Preto sentado ao lado de Aquilino Ribeiro e, de pé, no uso da palavra como Presidente da Comissão Central da Candidatura, Francisco Vieira de Almeida.

Sendo conhecido o percurso e a definição presidentista do regime saído da “Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926″, a presença daqueles homens ladeando o general Humberto Delgado dava que pensar a qualquer observador atento da política portuguesa da época. Para além do próprio candidato e de Aquilino Ribeiro (reconhecidos presidentistas), as restantes personalidades, visíveis na fotografia, eram de há muito identificadas com a opção monárquica para o preenchimento da suprema magistratura do Estado.

Francisco Vieira de Almeida (1888-1962), identificado por muitos como um monárquico de convicções liberais, era um prestigiado Professor de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa a quem se reconhecia um longo percurso de intervenção cívica, com independência de organizações político-doutrinárias ou escolas de pensamento. Luís de Almeida Braga (1886-1970) e Francisco Rolão Preto (1893-1977) eram dois fundadores do Integralismo Lusitano, monárquicos tradicionalistas – “reaccionários anti-conservadores”, como também gostavam de ser identificados.

Como interpretar aquele tão explícito apoio de destacadas personalidades monárquicas ao candidato presidencial Humberto Delgado?

Manuel Braga da Cruz observou que os monárquicos, organizados em torno da Causa Monárquica, constituíram uma componente fundamental do Estado Novo. Colocando a tónica na composição interna do regime, Braga da Cruz apresentou o comportamento dos monárquicos da Causa no âmbito de um colateralismo essencial com os republicanos, seguindo uma significativa evolução: depois de um período inicial de expectativa numa restauração do Trono (1926-1933), ter-se-á seguido um período em que, frustrados com a definição presidentista do texto constitucional de 1933, passaram a um comprometido “colaboracionismo crítico”, espreitando oportunidades de insinuação junto do Poder (1933-1951). O insucesso da tentativa restauracionista, após a morte do Presidente Carmona, em 1951, terá posto fim a muitas ilusões, abrindo-se então um conturbado período de distanciamento e mesmo de afrontamento interno (1951-1961), até que o acender da questão ultramarina os veio colocar sem outra alternativa que não fosse a de defender a manutenção do regime como um mal menor (1961-1974).

À luz da periodização e dos critérios enunciados por Manuel Braga da Cruz, poderíamos ser tentados a ver, na participação daqueles destacados monárquicos na candidatura de Humberto Delgado, a expressão do referido “afrontamento interno” ao regime, no culminar de um “conturbado período de distanciamento”. Tal apreciação não seria exacta. Os monárquicos Vieira de Almeida, Almeida Braga e Rolão Preto, além de não estarem organizados na Causa Monárquica, não culminavam, com o seu apoio ao general Humberto Delgado, uma atitude de afrontamento ao regime, surgida em 1951, na sequência de uma falhada tentativa restauracionista. Em 1958, ao colocarem-se ao lado de um candidato presidencial oposicionista como Humberto Delgado, aqueles monárquicos faziam jus, não obstante as suas diferenças de postura e sensibilidade, a um passado político com um indelével traço comum: uma antiga e persistente oposição ao Estado Novo de Salazar.

O Estado Novo, desde o início da sua institucionalização, do mesmo modo que não agregou todos os republicanos, também não agregou todos os monárquicos. Para além do “colaboracionismo crítico” de muitos, referido por Braga da Cruz, bem cedo houve outros que não apenas lhe recusaram colaboração, como de imediato lhe moveram oposição. Ora, entre esses monárquicos oposicionistas, em lugar de destaque, contaram-se sempre os integralistas lusitanos. Apesar de alguns dirigentes da situação salazarista terem procurado apropriar-se do seu legado intelectual e político, alguns, inclusive, fazendo-se passar por seus fiéis discípulos, foi precisamente em torno dos mestres do Integralismo Lusitano, acolitados por alguns “couceiristas”, ou monárquicos “liberais” da índole de um Francisco Vieira de Almeida, que bem cedo se definiu o eixo monárquico oposicionista ao Estado Novo.

Estando por fazer uma História da resistência monárquica ao Estado Novo, com importantes fontes documentais ainda dispersas ou inacessíveis, importa fazer aqui um breve alinhavo em torno do papel fundamental que nela desempenhou o movimento político-cultural integralista lusitano.

A rejeição integralista, tanto do parlamentarismo da 1ª República, como do corporativismo estatista do Estado Novo, tem uma precisa fundamentação doutrinária que importa esclarecer. Sem essa prévia elucidação, não será possível compreender nem o que verdadeiramente os separava dos monárquicos “constitucionais” e dos monárquicos tradicionalistas de feição autoritária e hierocrática – esteios a partir dos quais se formou a facção monárquica apoiante da situação salazarista -, nem o seu comportamento oposicionista e a sua motivação política para o apoio que prestaram ao candidato presidencial Humberto Delgado.

2. O Integralismo Lusitano e as divisões no seio dos monárquicos (1910-26).

Ao implantar-se a 1ª República, em Outubro de 1910, os monárquicos portugueses encontravam-se profundamente divididos por razões político-ideológicas e dinásticas. Enquanto no plano político-ideológico se opunham tradicionalistas e modernistas, permanecia, em grande medida paralelamente, a antiga divisão dinástica entre “legitimistas”, partidários da descendência do rei proscrito D. Miguel I (que os adversários, monárquicos e republicanos, gostavam de designar como “absolutistas”) e os “constitucionais” ou “liberais”, partidários do ramo reinante, descendente de D. Maria II.

Um dos primeiros e mais importantes efeitos da implantação da República sobre o campo monárquico foi o esvaziamento de parte significativa das correntes modernistas. Com efeito, logo que foram dissolvidos os partidos do rotativismo do final da Monarquia da Carta, muita dessa “gente de fomes históricas, acostumada ao devorismo do erário”, aderiu sem complexos ao novo regime. Os monárquicos “constitucionais” ou “liberais” que, depois de Outubro de 1910, se mantêm mobilizados em torno da Causa Monárquica, foram na verdade poucos e na sua maioria procedentes do que restava do Partido Conservador Liberal (fundado em 1901 por João Franco), ou formados sob a influência dos sobreviventes do grupo dos “Vencidos da Vida”, inspirados pelo exemplo e pela obra de Ramalho Ortigão.

Só depois de 1914 se acrescentará ao campo monárquico a renovação político-cultural e geracional, introduzida pelo Integralismo Lusitano.

A expressão “Integralismo Lusitano” foi cunhada por Luís de Almeida Braga, em 1913, na revista Alma Portuguesa, editada na Bélgica por um grupo de expatriados monárquicos. Em 1914, aquela expressão surgiu inscrita no lançamento da revista Nação Portuguesa, para designar um programa político monárquico e um movimento de ideias políticas que acabava de se constituir.

Mas quem eram e ao que vinham os integralistas lusitanos?

Ao lançarem a revista Nação Portuguesa, os integralistas eram um grupo de jovens, quase todos acabados de sair da Universidade de Coimbra: José Hipólito Vaz Raposo (1885-1953), Luís de Almeida Braga (1886-1970), António de Sousa Sardinha (1887-1925), Alberto de Monsaraz (1889-1959), José Pequito Rebelo (1893-1983). O que logo ressaltava era a sua extrema juventude: Hipólito Raposo, o mais velho do grupo, tinha 29 anos, Pequito Rebelo, o mais jovem, tinha apenas 21. A média de idades não ultrapassava os 24 anos.

Quanto aos seus propósitos, foi Alberto de Monsaraz, o director da revista Nação Portuguesa, quem, ao assinar o seu primeiro editorial – uma “Carta Aberta” dirigida a Moreira de Almeida – se identificou como “um português tão desiludido do 4 como do 5 de Outubro”. A mensagem de Alberto de Monsaraz não podia ser mais clara: dirigindo-se aos monárquicos, afirmava-lhes que a recém-deposta “Monarquia Constitucional” não lhes servia. Para os integralistas, a Monarquia derrubada era um corpo estranho à Nação. Havia que retornar à Monarquia, sim, mas à verdadeira Monarquia Portuguesa. Os portugueses haviam esquecido em que consistia uma tal Monarquia; os integralistas ali estavam para a explicar aos próprios monárquicos.

Ficando claro que não se propunham a uma simples restauração da Monarquia deposta, havia, ainda assim, quem pudesse achar estranho que entre os integralistas, em posto de comando, surgisse António Sardinha que fora um dos mais distintos estudantes republicanos do seu tempo e que chegara a trocar correspondência com Teófilo Braga. Em breve se ficaria a saber que o Integralismo Lusitano contava nas suas fileiras com outros ex-republicanos como João do Amaral ou Domingos Garcia Pulido.

Agregando monárquicos, que não se reconheciam na Monarquia deposta, e republicanos convertidos ao monarquismo por se não reconhecerem na República recém-implantada, a questão não podia deixar de se colocar: de que Tradição se reivindicavam os integralistas lusitanos? Com que ideias, tomadas de que mestres, se formara esse movimento de jovens que se propunha reatar a perdida Tradição portuguesa?

Os integralistas, do mesmo passo que apresentaram um índice de soluções políticas sob o título “monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar”, indicavam também, desde os primeiros números da Nação Portuguesa, as fontes do seu pensamento político: os Mestres do pensamento português que haviam alicerçado e erguido as instituições fundamentais do Reino de Portugal.

Era o pensamento político que reconhecia os foros e liberdades da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), estabelecia as regras da sua representação em Cortes e definia o conteúdo dos pactos que os Reis juravam respeitar (ao Rei, cuja autoridade era entendida como um serviço, cumpria reger os destinos da República); era o pensamento político que levantara a Nação contra as pretensões de Castela, que fundara a legitimidade da Dinastia de Avis e sustentara a Restauração de 1640; era o pensamento político que se expressara, desde os alvores da nacionalidade até ao último quartel do século XVII, através de uma vasta plêiade de escritores, de que os integralistas destacavam, entre tantos outros: Álvaro Pais, Frei António de Beja, Jerónimo Osório, Diogo de Paiva, Frei Manuel dos Anjos, Frei Jacinto de Deus, Sousa de Macedo, Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia.

Nas formulações políticas daqueles canonistas e jurisconsultos se encontrava o cerne do pensamento que melhor corporizara a Tradição política da Monarquia Portuguesa. Neles se expressara o pensamento político português que, após a Restauração de 1640, recebera sucessivos tratos de polé, primeiro no plano das ideias, depois no das instituições; desde o advento do absolutismo iluminado, pela mão do Marquês de Pombal, até ao período do chamado “Constitucionalismo”, definitivamente implantado na década de 1830.

Mas aquele pensamento político português resistira às infiltrações estrangeiradas do Século das Luzes, sobrevivendo em autores como Sousa Farinha, Rodrigues Leitão, Marquês de Penalva e que, nos inícios do século XIX, seria continuado por Fortunato de São Boaventura, José da Gama e Castro, Faustino José da Madre de Deus, Francisco Alexandre Lobo, Acúrcio das Neves, Gouveia Pinto, Ribeiro Saraiva, Visconde de Santarém…. Os integralistas não se mostravam dispostos a permitir o esquecimento ou adulteração daquele pensamento político, surgindo com o firme propósito de o recuperar e adequar às exigências dos novos tempos; o pensamento político, que ajudara a fazer a Nação, não podia morrer, sob o risco de morrer com ele a própria Nação.

Para os integralistas lusitanos não fora a implantação da República que, em rigor, quebrara a Tradição política portuguesa. A República era apenas a continuação da Monarquia da Carta, ainda que “uma continuação agravada, nos princípios e nos factos”: destronara-se o Rei e passara a dominar o Mito que identificava a Democracia com o regime republicano. Para os integralistas, a Democracia e a defesa da Res publica não era o verdadeiro programa daqueles que a si próprios se designavam por “democráticos” e “republicanos”. O que o regime implantado em 5 de Outubro de 1910 instituíra era, em rigor, um “governo de classe contra as classes”; o “governo de uma aristocracia plutocrática (representada pelos políticos dos partidos) contra os interesses de uma grande massa de deserdados”.

Fizeram-se desentendidos, quer os derrotados monárquicos do regime da Carta, quer os “republicanos” vitoriosos e, não obstante as longas listas de fontes inspiradoras que os integralistas iam indicando e explicando, bem cedo os acusaram de plágio de ideias de origem estrangeira, chegando a atribuir-se-lhes directa inspiração num movimento neo-monárquico francês, a Action française, que, naquela época, fazia furor nos meios intelectuais parisienses.

Formados num ambiente intelectual dominado pelo renascimento católico (o reveil de l’Evangile) e pelo neo-romantismo das escolas da viragem do século, os integralistas lusitanos retomaram o projecto de “reaportuguesamento de Portugal” na linha de pensamento da Geração de 70 pós-Ultimatum (do grupo dos “Vencidos da Vida”). Partindo da escolástica hispânica seiscentista e dos autores legitimistas de inícios do século XIX, proclamaram a necessidade não apenas de uma restauração da monarquia, mas de uma integral restauração de Portugal (que para eles significava, no plano institucional, a simultânea restauração da Res publica e do Trono).

A voz dos integralistas lusitanos surgiu em dissonância, quer com os legitimistas, quer com os “constitucionais”. Dos primeiros, separava-os a “questão dinástica” (aceitavam os fundamentos históricos da posição legitimista mas, em 1914, ainda consideravam D. Manuel II como o rei que melhor servia o interesse nacional naquela hora difícil); dos segundos, separava-os a doutrina e o projecto político.

Se os monárquicos “constitucionais” inicialmente os temeram, pelo brilhantismo e combatividade intelectual de que davam claro sinal, também cedo perceberam a sua utilidade proselitista no terreno da luta político-ideológica. Com o movimento restauracionista em nítido ascenso depois de 1914, os integralistas vêm, com a entrada de Portugal na 1ª Guerra Mundial, tornar público o seu primeiro manifesto político (1916), depressa se transformando de movimento de ideias em movimento político organizado – Primum vivere deinde philosophare era o princípio que passavam a adoptar. Em 1918, os integralistas estavam já integrados no bloco de forças apoiante do Sidonismo e, logo após o assassinato do presidente Sidónio Pais, entre Janeiro e Fevereiro de 1919, participam activamente na revolta do Monsanto e na Monarquia do Norte.

Depois de 1920, desfeita a tentativa restauracionista e insatisfeitos com a atitude de D. Manuel II – considerando que a sua postura política deixara de oferecer garantia de servir o interesse nacional -, os integralistas afastaram-se da sua obediência. Em torno de D. Manuel ficaram os “constitucionalistas” ou “liberais”, acolitados pelo tradicionalismo de feição ideológica mais vincadamente autoritário, entretanto formado em torno do grupo da Acção Realista, sob a liderança de Alfredo Pimenta. O grosso do monarquismo tradicionalista passava a estar aglutinado em torno da Causa Monárquica Portuguesa, também designada por Grémio Tradicionalista Português, juntando o Partido Legitimista e o Integralismo Lusitano no reconhecimento de D. Duarte Nuno como Chefe da Casa Real portuguesa.

3. Os monárquicos e o estabelecimento do Estado Novo.

Aquando do pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926, ainda que doutrinariamente divididos entre as várias espécies de tradicionalismo e modernismo, e pela “questão dinástica” entre miguelistas e manuelistas, praticamente todos os monárquicos convergiram no apoio aos seus anunciados propósitos regeneradores. Os integralistas lusitanos, tendo desempenhado importante papel nos movimentos conspirativos que lhe estiveram na origem, não foram naturalmente excepção, anunciando de imediato suspensa a sua actividade política.

Apesar do precoce afastamento do general Gomes da Costa da direcção da Ditadura, a atitude dos integralistas manter-se-á em benevolente expectativa. Em 2 de Março de 1930, era Hipólito Raposo quem considerava que a Ditadura, não obstante “a dispersão da força política, por várias correntes de influência militar, dependentes ainda do preconceito constitucional e das sugestões da maçonaria”, tinha revelado, até aí, um “bom instinto de salvação nacional, em busca de uma inteligência de governo”.

Pouco depois da “rebelião de Luanda” e da “revolta da Madeira”, quando Oliveira Salazar, no seu discurso no Ministério do Interior, em 30 de Julho de 1930, proclamou a “Ditadura de Salvação Pública”, a reacção integralista foi ainda a de lhe dar o benefício da dúvida.

Foi a última manifestação pública benévola dos integralistas para com a Ditadura e o seu novo Chefe. Em Outubro, Hipólito Raposo suspendeu a sua colaboração no Diário de Notícias, onde tinha vindo a desenvolver o tema da necessária reactivação dos municípios. Em Abril do ano seguinte saiu o primeiro número do jornal Revolução: começava a definir-se o eixo nacional-sindicalista de combate ao salazarismo.

Em 28 de Maio de 1932, quando foi tornado público o novo projecto de Constituição, sem margem para quaisquer dúvidas, os integralistas lusitanos abriram-se ao combate no plano das ideias e dos princípios. No tom irónico dos “reparos à Constituição” que então apresentaram, estão já presentes as principais linhas de força daquelas que virão a ser as suas virulentas denúncias da “Salazarquia”. A discordância dos integralistas tocava em pontos fundamentais do referido projecto constitucional e, segundo eles, tornava inviável uma verdadeira restauração da República: a representação das classes e profissões iria ser feita através de uma Câmara Corporativa reduzida a mera função consultiva; a representação política mantinha-se monopólio exclusivo de partidos políticos (o projecto adoptava, na prática, o modelo do partido único); os municípios surgiam como meras delegações do poder central; o sindicalismo não seria livre, antes obrigatório e de chancela governamental; vingava o modelo centralista do Acto Colonial que, à maneira dos países de imperialismo comercial, negando a tradicional feição portuguesa de assimilação jurídica e espiritual, cerceava as autonomias provinciais ultramarinas.

Mas eis que, no campo monárquico, pouco depois de ser conhecido o projecto do texto constitucional, a “questão dinástica” vem a ter inesperado desfecho: na tarde de 2 de Julho de 1932, em Twikenham, um súbito edema sufocante da glote pôs termo à vida de D. Manuel II.

D. Manuel II morria sem descendentes directos ou colaterais, extinguindo-se o “ramo constitucional” da Dinastia de Bragança. D. Duarte Nuno de Bragança, o neto do desterrado e proscrito de Évora-Monte, surgia agora como único possível herdeiro. Aos legitimistas, para quem D. Miguel I sempre fora o soberano indiscutível, não oferecia dúvida a legitimidade do neto, D. Duarte Nuno. Para os integralistas lusitanos, tão pouco, desde que, iam já 12 anos, o haviam aceitado. O problema da sucessão vai pôr-se aos tradicionalistas da Acção Realista e aos “constitucionais” que, vivendo das saudades do regime da Carta, deposto em 1910, se viam agora privados de Rei.

Pouco depois, porém, e com escassas opiniões contrárias, os corpos dirigentes da Causa Monárquica reconheceram em D. Duarte Nuno de Bragança “todos os títulos de sucessor de El-Rei o Senhor Dom Manuel II”, “tendo por conseguinte decidido fazer a sua aclamação como Rei legítimo de Portugal”.

Definitivamente encerrada a “questão dinástica”, foram dissolvidas todas as organizações monárquicas pré-existentes, formando-se a Causa Monárquica em obediência a D. Duarte Nuno de Bragança.

Coincidia a fusão organizativa dos monárquicos com o ultimar da constitucionalização do Estado Novo. Com excepção dos mestres integralistas, que já haviam manifestado o seu repúdio pela nova ordem política, os restantes monárquicos mantinham-se ainda em expectativa.

Salazar, no discurso de 23 de Novembro de 1932, dirigiu-se então explicitamente aos monárquicos convidando-os a ingressarem na União Nacional. Referindo-se ao falecimento de D. Manuel II, porém, Salazar deixou tombar a seguinte afirmação: “Leva-o a morte, sem descendente nem sucessor”.

Perante aquelas públicas palavras de Salazar, instalou-se de imediato alguma desorientação entre os monárquicos que consideravam Salazar monárquico por tradição e formação, quando não de coração. Os integralistas lusitanos, integrados na Causa Monárquica, reagiram de imediato e de forma particularmente dura para com Salazar e seus acólitos monárquicos (ou que como tal se tinham vindo a posicionar): “Ao nosso caso de consciência política consagrámos a mocidade, já distante, e por ela muitas vezes temos arriscado a vida. Há muito que o resolvemos sem termos de nos penitenciar… O sr. dr. Oliveira Salazar só agora resolve o seu e, com tal desembaraço e clareza o faz, que não permite dúvidas a ninguém sobre a coerência do seu pensamento com a sua acção futura. Antes assim. Sempre admirámos a sinceridade, tanto nos homens públicos como nos particulares, mas ficamos ainda certos de que se não mata uma causa por asfixia, nem se pode empreender a regeneração nacional com ambiciosos e com trânsfugas, gafaria moral de que são feitas, normalmente, as camarilhas dos aduladores”.

Entre os monárquicos, todavia, com excepção dos mestres integralistas e dos seus mais próximos discípulos, vingava já a ideia de que o Estado Novo não sendo nem uma República, nem uma Monarquia, seria, ainda assim, uma espécie de compromisso entre ambas, consequentemente instável e provisório, cujo desfecho acabaria por ser a restauração monárquica. Esperançosos numa restauração a prazo, ficou incompreendida, para muitos monárquicos, a denúncia integralista do falso monarquismo de Salazar.

4. O desafio Nacional-Sindicalista à «Salazarquia» (1931-34).

Em Junho de 1926, os integralistas haviam suspendido a sua actividade política em proveito do que consideravam ser a mais urgente necessidade de restaurar a República (Res publica). Tendo começado a romper, em finais de 1930, com a sua atitude de expectativa benévola para com a Ditadura, começou a desenvolver-se, em Abril de 1931, o eixo de acção nacional-sindicalista em torno do jornal Revolução.

O Sindicalismo Orgânico, elemento básico do seu conceito de “monarquia tradicional, orgânica e anti-parlamentar”, vinha sendo considerado pelos integralistas, nas novas condições político-sociais do pós-guerra, uma das suas máximas prioridades programáticas. Lançado em 1919-20 sob a liderança de Alberto de Monsaraz e de Francisco Rolão Preto (cuja cooptação para a Junta Central do Integralismo Lusitano havia sido tornada pública em 1922), tinha-se mantido até meados dos anos 20 em estrita subordinação à integralidade do ideário.

Desde meados de 1932, integrados na Causa Monárquica, estabelecida em torno de D. Duarte Nuno, mas crescentemente isolados na sua atitude de recusa do nascente Estado Novo – parte das novas gerações integralistas entrava a colaborar com Salazar – alguns destacados integralistas decidem-se a dotar o seu projecto sindicalista de organização própria. Com o socialismo reformista a manter-se em decidida decadência e numa época de ascenso dos movimentos nacionalistas e dos métodos revolucionários de conquista do Poder, com disseminado recurso a chefaturas carismáticas e métodos milicianos de organização e propaganda – estavam bem vivos os exemplos de Lenine, Mussolini, Kemal Pachá… – dão ao Movimento Nacional-Sindicalista coerência organizativa em torno da figura carismática de Rolão Preto, mantendo em suspenso a reivindicação da suprema magistratura régia.

O Movimento Nacional-Sindicalista desenvolveu-se de forma rápida em torno de Rolão Preto que, com dotes extraordinários de persuasão, passou a desafiar a aparentemente pouco mobilizadora “posição estática” de Salazar.

Depois de proclamado, no Parque Eduardo VII, em Lisboa, o Alea Jacta Est do Nacional-Sindicalismo, e enquanto se apertou o cerco das proibições e censura sobre o jornal Revolução, os nacional-sindicalistas responderam pelo incremento da militarização das suas fileiras. Por ocasião do 28 de Maio de 1934, no Porto, em notória demonstração de força, reúnem uma coluna de 300 nacional-sindicalistas uniformizados e cerca de 2000 civis, na Praça Carlos Alberto. Sucedem-se os assaltos às suas instalações em Lisboa, Porto e Bragança.

Em 20 de Junho de 1934, Francisco Rolão Preto acabará por apelar para o Presidente da República, solicitando-lhe “pronta intervenção” no sentido de, entre outras coisas, garantir condições de liberdade de organização e movimento ao Nacional-Sindicalismo.

A resposta do Governo veio célere e impiedosa. Tendo Salazar já feito a captação da componente juvenil modernista-fascista, que os integralistas por breves momentos haviam logrado mobilizar, resolveu pôr-lhe ponto final. Presos e exilados Alberto de Monsaraz e Rolão Preto, o Movimento Nacional-Sindicalista foi oficialmente proibido e dissolvido. Salazar ficava, por fim, com as mãos livres para dirigir a institucionalização do Estado Novo.

5. Sob a «Salazarquia» o Integralismo catacumbal.

Para os crescentemente isolados integralistas, o desfazer da experiência Nacional-Sindicalista foi rude e decisivo golpe nas suas aspirações em influenciar o curso dos acontecimentos. Recusando colaboração à União Nacional, ao contrário do grosso dos monárquicos – entre os quais se contavam tanto os “constitucionais” como os tradicionalistas provenientes da Acção Realista – alguns mestres do Integralismo Lusitano prosseguirão, no entanto, organizados em torno da Causa Monárquica.

Entretanto o governo tornou conhecido o testamento assinado por D. Manuel II, em Fulwell Park, Twickhenham, no dia 25 de Setembro de 1915, e decidiu dar aplicação e novo proprietário àqueles bens, instituindo uma fundação de direito público – a Fundação da Casa de Bragança.

Em Fevereiro de 1934, pelas mãos do Conde de Almada e de João de Azevedo Coutinho, foi entregue ao Presidente do Ministério o protesto formal de D. Duarte Nuno de Bragança. Era um protesto pela solução de confisco, adoptada pelo Governo relativamente a “uma propriedade particular de natureza especial, não partilhável nem susceptível de disposição testamentária”. Era um protesto, mas também uma reafirmação, perante o Estado Novo, dos seus direitos a uma propriedade cuja guarda e conservação lhe pertencia por herança, enquanto Chefe da Casa Real portuguesa. O teor do protesto de D. Duarte Nuno, foi publicado pela imprensa acompanhado pelo parecer jurídico produzido por três distintos advogados. Eram, sem surpresa, José Augusto Vaz Pinto, Luís de Almeida Braga e Simeão Pinto de Mesquita… Os integralistas mantinham-se na primeira linha do combate contra a política de Salazar.

Integrados na Causa Monárquica, os integralistas tentam ainda, por intermédio de Hipólito Raposo, em 16 de Dezembro de 1934, ver aprovada no Conselho da Lugar-Tenência uma moção favorável à abstenção monárquica nas próximas eleições. Rejeitada a moção, Hipólito Raposo acabou pedindo a sua demissão da respectiva Comissão Executiva.

Ainda que considerados um esteio intelectualmente destacado e brilhante entre os monárquicos, as sucessivas demarcações dos integralistas face ao emergente Estado Novo, não estavam a ser seguidas por grande número de monárquicos. A sua capacidade de influenciar ia ficando muito diminuída mesmo entre aqueles sobre os quais, alguns anos antes, tinham exercido forte influência: parte das novas gerações integralistas, ou adere ao salazarismo – esses “trânsfugas, gafaria moral de que são feitas as camarilhas dos aduladores”- ou remete-se a um mutismo comprometedor. Pouco depois, quando se tornou nítida a tentativa de apropriação do legado integralista, por parte de alguns dos destacados quadros políticos do novo regime, aos mestres integralistas restou, tanto quanto a censura o permitia, a demarcação e o desfazer do embuste.

Seguiu-se a difícil conjuntura da Guerra Civil de Espanha (1936-39). O fundo nacionalismo e catolicismo dos integralistas não lhes permitia uma acção política ostensiva ao regime. O próprio Estado Novo enfrentava agora as ameaças de contágio anti-clerical e internacionalista provenientes da Espanha. Ainda que fossem vozes críticas desgarradas, nem por isso a reacção de Salazar deixou de ser particularmente dura para com aqueles que ousavam atitudes menos conformes à ortodoxia salazarista: Rui Ulrich, embaixador em Londres, foi forçado a demitir-se em 1936, por ter convidado, para almoçar na Embaixada, D. Duarte Nuno de Bragança; Paiva Couceiro, em 1937, foi preso e logo depois expulso do território nacional como resposta a uma carta dirigida a Salazar, onde manifestava o seu apreensivo patriotismo em face da situação angolana; Afonso Lucas foi demitido de Juiz do Tribunal de Contas no dia imediato à publicação em A Voz de um artigo que, aliás, lograra a autorização da Censura; Rolão Preto, com mandato permanente de prisão, andou clandestino entre Espanha e Portugal; Hipólito Raposo, em 1940, acabaria por ser preso, demitido de professor do Conservatório e desterrado para os Açores, na sequência da publicação do livro Amar e Servir, que a polícia, por ordem superior, apreendeu e queimou.

No início dos anos 40, aos mestres integralistas pouco mais restou do que a frente interna da Causa Monárquica. Com alguma implantação no seio da sua Comissão Organizadora (COMORG), em 1939 dela se destacara um Grupo de Acção Monárquica Autónoma (GAMA) com o objectivo de vir a criar um movimento político. O intento saiu gorado, mas as novas gerações integralistas vão sendo reunidas em torno de novos jornais como o Aléo, dirigido por Fernão Pacheco de Castro, ou de revistas já antigas como a Gil Vicente, sob a direcção de Manuel Alves Oliveira. Em 1941, o GAMA acabará por se organizar como editora, sob o impulso de Leão Ramos Ascensão, Centeno Castanho e Fernando Amado. Alguns anos depois surgia também, sob impulso das novas gerações integralistas, a criação do Centro Nacional de Cultura (1944).

Em 1945, ao ser lançado o Movimento de Unidade Democrática (MUD) lá estavam mobilizados os monárquicos Vieira de Almeida ou Rolão Preto. Por essa altura, a Causa Monárquica entrou em reorganização. D. Filipa de Bragança fez então saber a Salazar que o Conselho Supremo da Causa – o seu órgão máximo – passava a contar com 5 membros: José Pequito Rebelo, Luís de Almeida Braga, Ruy de Andrade, D. José Castelo Branco Pombeiro e Caetano Beirão. Para além de Castelo Branco Pombeiro e do pimentista Caetano Beirão, à cabeça surgiam dois integralistas, a que D. Filipa não poupa encómios, lembrando a Salazar, aliás, para que não restassem dúvidas acerca de quem passava a deter influência no seio dos novos órgãos da Causa que, no dia anterior, ela e seu irmão haviam estado com Luís de Almeida Braga e Pequito Rebelo trabalhando numa carta que D. Duarte iria dirigir em breve aos monárquicos.

A resposta de Salazar e dos seus acólitos monárquicos não tardou muito. A par dos que se encontravam firmemente instalados na super-estrutura do regime – entre outros, Mário de Figueiredo, João Lumbrales, José Nosolini, José Soares da Fonseca, Cancela de Abreu – eis que Fezas Vital, uma figura grada do regime, se tornava, em 1946, Lugar-Tenente de D. Duarte Nuno.

Passado o período eleitoral daquele ano, coincidente com os festejos dos 20 anos de existência do Estado Novo, pouco mais restava ao integralista Alberto de Monsaraz do que, sob o sugestivo título de Respiração Mental, dedicar as suas palavras “aos camaradas jornalistas”- passado o período eleitoral, recomeçara “o habitual tormento de dispneia mental, de restrições à inteligência, de falta de ar para o espírito” .

Pouco depois e enquanto os esperançosos monárquicos salazaristas iam vibrando com as novidades provenientes de Espanha – Francisco Franco, ao publicar a Lei de Sucessão, reconhecia ipso facto o Estado espanhol como Reino -, os integralistas, pouco dados a miragens, respondem pela demarcação e conspiração contra o regime. Em 1947, o brigadeiro Vasco de Carvalho, cunhado de Pequito Rebelo e integralista lusitano desde a primeira hora, surgia envolvido numa conspiração reviralhista. Foram presos, julgados e castigados.

Nos anos seguintes, a intransigência dos órgãos directivos da Causa Monárquica não parará de crescer para com os monárquicos oposicionistas, acabando por levar à irradiação, em Fevereiro de 1949, tanto de Luís de Almeida Braga como de Francisco Vieira de Almeida. No mês seguinte, Hipólito Raposo lavrava o seu protesto pedindo a demissão do cargo que ainda detinha na Causa, o de Presidente do seu Supremo Conselho Cultural.

Com os integralistas expulsos e demitidos da Causa saiu grande número de jovens nascidos entre 1920 e 1930. Na eleição de deputados para a Assembleia Nacional, em Novembro de 1949, estes estão já mobilizados em torno das duas listas “regionalistas independentes” apresentadas em Castelo Branco e Portalegre. Estabelecidas com bases num acordo entre monárquicos integralistas e republicanos liberais-democratas, surgiam a encabeçar aquelas listas, em oposição às da União Nacional, Pequito Rebelo por Portalegre e Cunha Leal por Castelo Branco.

6. Os monárquicos salazaristas e a tentativa restauracionista (1951-52).

Em 1940, a Infanta D. Filipa de Bragança, numa visita que fez a Portugal – a convite do Governo português para representar os reis de Portugal nas Festas do duplo Centenário – ao receber destacados monárquicos, aconselhou-os a ter “confiança em Deus, confiança nas nossas forças e confiança no silêncio (de Salazar)”.

Pode dizer-se que, nessas palavras, ficou bem resumida a atitude da generalidade dos monárquicos da Causa em face da Situação. Mantinham-se expectantes porque confiavam no silêncio de Salazar. Ao contrário dos integralistas lusitanos, havia destacados monárquicos, como Alfredo Pimenta, insistindo em fazer passar a ideia de que Salazar seria o “percursor do Rei”. Segundo esses monárquicos, a restauração acabaria por ser, mais cedo ou mais tarde, o remate do regime pessoal instituído. Salazar seria, no fundo, um monárquico calando os seus mais íntimos sentimentos e convicções, esperando apenas a ocasião propícia para inteiramente se revelar. A realidade era bem diferente, como veremos de seguida, mas foi assim que Salazar foi continuando ao leme dessa “República-Absurdo” (a expressão era de Alfredo Pimenta), escorada em importante número de monárquicos.

D. Duarte Nuno de Bragança, apesar do conselho em contrário de Salazar, veio para Portugal no início dos anos 50. Mas não eram os monárquicos da Causa – com excepção dos poucos integralistas e de alguns independentes – um dos esteios fundamentais do regime, capazes de o pôr em causa a qualquer momento? – Eram-no, sem dúvida. E era por isso que “Salazar evitava cuidadosamente hostilizá-los, deitando tudo a perder. Dizia-lhes que a questão não estava posta e não tinha por isso de ser discutida”.

Salazar, “habilmente, sempre desejoso de não perder o apoio dos monárquicos, ia-lhes repetindo a tese que formulara no discurso de 20 de Outubro (de 1949): não era oportuno restaurar naquele momento a Monarquia, mas fossem preparando o terreno, doutrinando, ganhando posições, pondo hoje uma pedra aqui e amanhã outra acolá, encaminhando as coisas de modo a que ela viesse a surgir, dentro em breve, como solução nacional, coroamento natural e necessário da estrutura política do País”.

O desígnio de Salazar, como ele mesmo viria a explicar a Marcelo Caetano (em 28 de Julho de 1957), era bem claro: “nós só temos podido viver porque a questão (da restauração da monarquia) não se tem posto nem convém que se ponha, o que envolve deixar ao menos em suspenso e como possibilidade futura, longínqua e indefinida a solução monárquica. Isto tem satisfeito e continua a satisfazer os monárquicos, porque a seus próprios olhos os justifica do apoio que dão. Para os ter connosco parece-me necessário não fazer o Governo profissão de fé republicana nem afirmar o regime republicano como assente in aeternum, o que aliás é dispensável e seria mesmo tolo.

“A ideia de que uma afirmação do género, alienando o apoio dos seus, pode trazer-nos o apoio dos outros, julgo-a ilusória, porque os verdadeiros republicanos ou os que se julgam ser não querem esta República, mas outra muito diversa que implanta a denegação e a destruição do que está feito”.

Em 18 de Abril 1951, a morte do Presidente Carmona pareceu vir criar as condições tão ansiosamente esperadas pelos monárquicos salazaristas. Na Assembleia Nacional discutia-se a proposta de lei de revisão da Constituição apresentada pelo Governo. Mário de Figueiredo não perdeu tempo: perante as figuras principais do regime reunidas na sede da União Nacional, para discutir as resoluções que as circunstâncias exigiam, lançou a questão da chefia do Estado: “Esta é a altura de decidirmos se continuamos em República ou restauramos a Monarquia”. A discussão acendeu-se, com Albino dos Reis gritando com Mário de Figueiredo e seus apoiantes: -”Vocês são uns lunáticos! Restaurar a Monarquia nesta altura? Isso não tem pés nem cabeça!”

A discussão ficou inconclusiva. A iniciativa, porém, estava agora do lado dos monárquicos. Em 24 de Abril, os deputados aprovaram uma emenda constitucional sobre a eleição do Presidente da República: em caso de falecimento do Presidente da República, o Chefe do Governo exercia cumulativamente o cargo vago, reunindo a Assembleia Nacional sessenta dias após a vacatura “para deliberar sobre a eleição presidencial”. Para Marcelo Caetano, “esta maneira de dizer era tão ambígua que permitia tudo: desde a marcação imediata do acto eleitoral até ao seu adiamento indefinido e, inclusivamente, a sua não realização”. Alarmado com o terreno assim perdido aos monárquicos, Caetano escreveu a Salazar denunciando-lhes os propósitos declarados: resolver a crise através de um “«golpe de Estado» parlamentar”. Salazar, em resposta à inquietação de Caetano, promete “trabalhar para que a aplicação (da emenda constitucional) seja o mais inofensiva possível”.

Feitos os funerais de Carmona, Salazar convocou para S. Bento os membros do seu “conselho privado” para os ouvir acerca do candidato a propor para a eleição do Presidente da República. Aí se pronunciaram, pelo lado monárquico, Mário de Figueiredo, João Lumbrales e Augusto Cancela d’Abreu, enquanto do lado presidentista tomavam a palavra Marcelo Caetano, Albino dos Reis e Trigo de Negreiros. Mário de Figueiredo fez-se desentendido perante a questão levantada por Salazar e, colocando de imediato a questão do regime, afirmou ser “necessário acabar-se com o mandato temporário do Chefe de Estado”.

As facções monárquica e presidentista do regime fizeram-se então ouvir em acalorada discussão, esgrimindo argumentos – João Lumbrales e Augusto Cancela d’Abreu seguiram a posição de Mário de Figueiredo; opôs-se-lhes Marcelo Caetano, logo acolitado por Albino dos Reis e Trigo de Negreiros. Salazar escutou mudo uns e outros, fruindo deliciado a sua autoridade arbitral.

“Nos dias seguintes Salazar começou a ouvir pessoas, habilmente, conforme o seu costume, sem revelar o seu pensamento, sem ir direito aos assuntos que queria debater, mas encaminhando a conversa de modo que o interlocutor dissesse o que ele desejava saber”.

Numa dessas audições, o Ministro da Defesa, Santos Costa, que se fazia passar por monárquico, ter-lhe-á finalmente dito o que ele queria ouvir: as Forças Armadas não estariam preparadas para aceitar e apoiar uma restauração da Monarquia. Salazar apressou-se em confidenciar a “boa nova” a Marcelo Caetano e a Albino dos Reis”. A decisão estava tomada, mas sossegados os acólitos, prosseguiu calmamente as consultas. Andou-se nisso até à data em que a Assembleia Nacional marcou o dia da eleição presidencial.

Com a União Nacional a decidir-se pelo general Craveiro Lopes, as oposições surgem divididas: de um lado, estão os atlântistas da «Comissão dos 24», liderada por Azevedo Gomes; do outro, um bloco afecto aos comunistas, em torno do Movimento Nacional Democrático (MND). Acabam por se apresentar dois candidatos oposicionistas: as forças afectas ao MND propõem Ruy Luís Gomes, enquanto um sector intermédio, liderado por Cunha Leal e Henrique Galvão – contando com o apoio dos integralistas Rolão Preto, Almeida Braga, Vasco de Carvalho – apresenta o almirante Quintão Meireles. Ruy Luís Gomes foi liminarmente afastado pelo juízo selectivo do Conselho de Estado, passando os seus partidários à campanha da abstenção. O almirante Quintão Meireles ainda continuará até ao Manifesto de 19 de Julho em que, face à obstrução sistemática do regime e à falta de consenso nas oposições, anunciou a sua decisão de renúncia a colaborar em mais um “simulacro de eleição presidencial”. O general Craveiro Lopes, em 22 de Julho, acabou sendo eleito Presidente da República.

Apesar de derrotados, os monárquicos salazaristas não desarmam de imediato: no Congresso da União Nacional, marcado para 22 de Novembro, ainda tudo se preparou para concluir pela necessidade da restauração da Monarquia. É então que Salazar, uma vez mais procurando manter-se em posição arbitral, estabeleceu em segredo, com Marcelo Caetano e Albino dos Reis, uma linha de acção capaz de frustrar aqueles intentos.

O insucesso da tentativa restauracionista em 1951-52, após a morte do Presidente Carmona, desfez muitas ilusões. Vai então assistir-se, no seio dos monárquicos mais renitentemente salazaristas, entre 1952 e as eleições presidenciais de 1958, ou à deserção, ou a um seu crescente alheamento face ao regime.

É então que a própria Causa Monárquica se distancia do Estado Novo e, alterando a sua estratégia, passa a adoptar uma postura de “pressão negociante”. Nas eleições legislativas de 1953, a Causa deu a abstenção como indicação de voto, excepto nos círculos onde figurassem monárquicos reconhecidos. No ano seguinte, o novo Lugar-Tenente, Amílcar Passos e Sousa, deu ordens no sentido de os monárquicos organizados na Causa não aceitarem cargos políticos sem ouvir a respectiva Direcção. No Congresso da União Nacional, marcado para 1955, os monárquicos, sentindo-se objecto de discriminação, resolveram retirar-se.

A partir desse momento, Salazar começou a sentir que lhe escapava o apoio da sua facção monárquica. Tentou ainda recuperá-la, em desespero de causa, colocando na presidência da Comissão Executiva da União Nacional um monárquico que lhe era muito fiel: Costa Leite (Lumbrales). A estratégia de atracção dos monárquicos vai, porém, revelar-se incapaz de convencer. E Salazar será o primeiro a lamentar-se aos seus colaboradores mais próximos: “Fugiram-me os monárquicos, não me compreenderam”.

7. Uma Oposição impetuosa e descomposta.

Desde os primórdios do Estado Novo, em sucessivos actos públicos – eleitorais ou não – os integralistas lusitanos, acolitados por um pequeno grupo de “couceiristas” e “liberais”, sempre haviam afirmado a sua independência face ao regime, levando a que as sucessivas gerações de jovens mantivessem também o seu afastamento.

No início dos anos 50, os integralistas Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz, Luís de Almeida Braga e José Pequito Rebelo, sopesando a sua idade e as difíceis circunstâncias de luta política em que se vivia, apresentaram às novas gerações, com a data de 8 de Abril de 1950, um documento intitulado “Portugal Restaurado pela Monarquia”; era um documento contendo uma actualização doutrinária integralista e uma espécie de testamento político e espiritual.

Os mestres do integralismo lusitano, que haviam persistido praticamente isolados no campo monárquico a combater a “Salazarquia”, com o concurso das novas gerações e com as novas condições criadas pelo desaire dos monárquicos salazaristas, estão agora em melhor circunstância para atrair os desiludidos e para influenciar no sentido do derrube do regime.

O campo monárquico oposicionista desenvolve-se agora com maior rapidez, distribuído por várias sensibilidades fortemente impregnadas de integralismo – com o grupo de O Debate, em torno de António Jacinto Ferreira, ou em revistas como a Cidade Nova (Coimbra). No aproximar das eleições legislativas de 1957 vai então surgir, por iniciativa das novas gerações, a experiência dos chamados “monárquicos independentes”.

No teor do Manifesto que divulgam em Outubro desse ano, se afirma o seu entranhado anti-salazarismo e a matriz doutrinária integralista. Visando o regime autocrático instalado, denunciam que “nunca um homem é por si um sistema e nunca um sistema se pode estruturar num homem ou na sua obra”. Era ilegítima a situação política de um Governo que assentou o direito de governar pela obra realizada, que pratica a “censura demolidora … do pensamento criador e da audácia inovadora”, o “voto em teoria”, quando a “representação nacional se continuava a processar por escolha do Governo”. Proclamando a urgente necessidade em se abrir o caminho para uma “normalidade constitucional verdadeira e autêntica”, ao definirem o seu monarquismo, tornava-se clara a sua formação integralista: defendiam a “monarquia popular e tradicional da gente portuguesa, assente na defesa do povo e no seu consentimento”.

Do lado da resistência republicana, aproveitando o descontentamento crescente entre sectores até aí passivos no seio do regime, em especial os monárquicos, estava já a funcionar uma estratégia de aproximação aos dissidentes, delineada por António Sérgio. A oposição acabou por apresentar listas de candidatos em Lisboa, Porto, Braga e Aveiro, congregando velhos e novos monárquicos integralistas (Francisco Rolão Preto, Francisco Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Teles), velhos e novos republicanos (Cunha Leal, Abranches Ferrão, Mário Soares), ou católicos como Francisco Lino Neto. A lista da Oposição por Lisboa acabará por não ser aceite, retirando-se em protesto os demais candidatos oposicionistas ao sufrágio de 3 de Novembro, com excepção de Braga.

Quando Barrilaro Ruas, subscritor do referido Manifesto dos “monárquicos independentes”, concedeu entrevista acerca do momento eleitoral, havia afirmado: “O Estado Novo, regímen misto, feito de duas camadas sobrepostas, tem quase sempre por cima a camada antidemocrática. Mas de 4 em 4 anos e de 7 em 7 anos vem ao de cima a camada democrática. Recalcada durante tanto tempo, não admira que venha impetuosa e um tanto descomposta … E é isso mesmo o que a outra quer, para se rir dela e a fazer condenar pelos circunstantes. Mas essa prisioneira assim liberta não deixa de ser parte integrante do Estado Novo – que até não se exclui que resolva, de um momento para o outro, num «golpe de Estado constitucional», ou coisa assim, inverter as posições dos elementos que o compõem. Talvez então deixasse de ser Estado Novo, mas continuava a ser República: a 3ª…”.

Em 1958, ao apresentar-se a candidatura de Humberto Delgado, além de actualidade, ganhava aspecto novo o diagnóstico proferido um ano antes pelo jovem monárquico integralista Barrilaro Ruas: do seio de uma recalcada e descomposta oposição surgia um candidato fortemente escorado em personalidades que, a par de um longo passado oposicionista, eram também reconhecidamente monárquicas.

Sem ilusões acerca do provável desfecho de um bem sucedido “golpe de Estado constitucional”, para os monárquicos integralistas e para os jovens formados sob a sua influência, um outro confessado escolho os fez na altura hesitar num declarado apoio ao general Humberto Delgado. Firmados numa distinta formação intelectual e política, vendo-se a si próprios como herdeiros de uma tradição de luta pelas liberdades, vêem ainda em Delgado, não obstante as suas públicas manifestações em contrário, um militar de formação autoritarista com um longo passado de apreço pelo regime.

Os jovens integralistas acabarão por se distribuir por duas atitudes: o apoio explícito a Delgado ou a reserva. Enquanto Mário Saraiva e Henrique Barrilaro Ruas, por exemplo, mantêm alguma reserva, outros como Francisco Sousa Tavares avançam em explícito apoio à candidatura de Delgado. Animados pelos velhos mestres Almeida Braga e Rolão Preto, porém, e logo que se tornou pública a posição oficial da Causa Monárquica (nos jornais da tarde de 24 de Maio), a reserva de muitos discípulos acabaria por ser quebrada. O comunicado da Causa, manifestando, na sua parte normativa, alheamento do acto eleitoral, na sua parte histórica, em toada de louvor a Oliveira Salazar, não deixava de afirmar que o “prestígio do seu nome se identificava com o prestígio do País”. Barrilaro Ruas entendeu não deixar passar em claro aquela escusada reincidência em alinhamento com o Chefe do Governo. Em comentário à referida nota, depois de assinalar negativamente a insistência em tal atitude, concluíu: “enquanto a política oficial monárquica vai prosseguindo indefinidamente numa de duas linhas paralelas, a outra linha não pode prosseguir indefinidamente, uma vez que é limitada pelo curso de uma vida humana. Votar no Almirante Américo Thomaz pode ser o melhor ou o menos mau dos caminhos possíveis; mas só aparentemente equivale a votar em Salazar, já que quase ninguém admite como provável que Salazar se mantenha no Poder por mais este novo período de sete anos”.
Aos mestres integralistas, Luís de Almeida Braga e Francisco Rolão Preto, apoiantes de Humberto Delgado e membros da sua Comissão de Candidatura, coube avançar para a imprensa, expondo as razões do seu explícito apoio à candidatura oposicionista. Peça fundamental da sua campanha em apoio do general Humberto Delgado, documento histórico onde se transmite de corpo inteiro uma atitude depois esquecida ou mesmo silenciada, foi a entrevista concedida ao Diário de Lisboa por Luís de Almeida Braga. Publicada em 30 de Maio de 1958, a entrevista começou com a seguinte pergunta:

” – Nota-se nos meios políticos vivo interesse em conhecer a sua opinião na actual conjuntura da vida nacional. Quer dizer-nos o que pensa?

” – Para quê? Em hora mais própria para a acção do que para pregações, certo núncio apostólico longamente desfiava diante de Afonso III o lento rosário de subtis conceitos. E disse-lhe o rei: – «Frei Nicolau, para que gastar mais discursos? O tempo de arrazoar já lá vai». Também agora me parece que passou o tempo de dissertar. Quando a censura veda a clara expressão do pensamento e se chega ao extremo de ser proibido não só entregar ao público o resultado do estudo sincero, do leal conselho, do reparo justo, mas até se apreende o que apenas constitui ainda vago projecto, talvez nunca efectivado, como aconteceu com os apontamentos de Maria Archer para um livro sobre o primeiro julgamento de Henrique Galvão, tão-somente, a quem não tem mais armas do que a palavra e a pena, só pode encerrar-se em duro silêncio, como sinal de castigo e desprezo.

” – Não será essa uma atitude de renúncia ao combate?

” – Não! É uma forma altiva de protesto, reduto impenetrável para preservação da dignidade mental, defesa sagrada dos direitos do espírito. É no silêncio que se prepara o fogo que tempera as almas dos povos.

” – Aí está a confessar-se o doutrinário e o lutador. Vê-se que condena o presente e confia no futuro.

” – Sim. Condeno o híbrido sistema político, tirânico e vingativo, que está a arrastar-nos para a pior catástrofe da nossa História. A ninguém escapa que o regime é apenas um indivíduo, em fatal declínio, e que tudo se dissolverá com o seu desaparecimento. (…) Por maior que seja o génio de um homem, é sempre insuficiente para, por si só e para além da sua vida, manter a ordem e a segurança do Estado. Sem um princípio que a proteja, surdamente a Sociedade se dissolve. Compreendendo-o assim, dizia o Conde de Chambord, apresentando-se à sucessão do trono de França: – Ma personne n’est rien; mon principe est tout. Aqui, escamoteiam-se os princípios para que avulte a pessoa que os encabeça. Deste modo se forma a idolatria da autoridade, o materialismo da obediência passiva. (…) Se uma nação chega a este ponto, está madura para todas as desgraças. E esta é a minha dor…

” – Contudo, os partidários do regime apresentam como exemplar a gerência financeira…

” – Confundindo liberdade com desordem, força com brutalidade, o Estado Novo há muito se revelou incapaz de conciliar a autoridade e a liberdade. O Estado Novo é, afinal, a expressão política de problemas não resolvidos. Tendo começado por ser uma ditadura administrativa, manhosamente se transformou em ditadura policíaca, contrária ao destino moral e pessoal do homem. A onda das despesas públicas alastra assustadoramente e o custo da vida atinge preços de fome. Não temos pão nem trabalho para toda a gente. A emigração é sangria continuada e destruidora de energias inúteis. Descuram-se obras modestas, para gastar à larga em coisas de espaventosa propaganda de ocasião, em banquetes e bailes, em cortejos e cartazes de mil cores. (…) “A actual situação política sofre essencialmente da perda de consciência, tanto da sua razão de ser como dos princípios que devem reger as instituições. (…) Querem eleições e não querem partidos, como se votar não fosse tomar partido! (…) Diz a Constituição que a opinião política constitui uma força social e um elemento fundamental da política e da administração (artº. 22), e não se consente à opinião pública manifestar-se claramente. Apregoam-se as vantagens da continuidade do poder, e evita-se até a reeleição do Chefe de Estado…

“Nesta altura o sr. Dr. Luís de Almeida Braga, erguendo a voz, afirma:

” – Tantas contradições não podem deixar de exercer efeitos destrutivos no corpo social: são como veneno num organismo. E à sua volta levanta-se mesmo o problema da sinceridade. Por isso acuso o Estado Novo de ter desvirtuado a doutrina corporativa, tornando-a uma grosseira teia de burocratas opíparos e de fiscais demagogos, que dificultam o trabalho em vez de o facilitar; acuso-o de ter aniquilado o que restava das antigas liberdades municipais; acuso-o de ter instituido uma censura permanente, irresponsável e absurda; acuso-o de ter autorisado que os presos sejam agredidos, desde que se anunciou a utilidade dos «safanões a tempo»; acuso-o de ter exagerado as tributações para empregar esse dinheiro, que é verdadeiro sangue, em obras espalhafatosas e falsas propagandas de merecimentos pessoais; acuso-o de em tantas oportunidades fáceis ter desprezado a terra cativa de Olivença, ao contrário do generalíssimo Franco, que sem descanso reclama Gibraltar; acuso-o de ter falseado o texto da Constituição, impossibilitando a honrada convivência dos Portugueses; (…) acuso-o de ter criado entre nós o culto nietzcheano do super-homem; (…) acuso-o de ter estabelecido o Partido Único, – invenção danada do comunismo -, e de com ele e por ele embaraçar a solução do problema político português! (…) A Legião corresponde à Guarda Vermelha da Rússia comunista: é a milícia do Partido Único. Puramente de traça e acção comunista é a chamada «União Nacional», a que não falta nenhum dos caracteres de partido único, por mais que os apaniguados, com palavras vãs, se consumam a negá-lo. Reconheceu-o o insuspeito Mihaïl Manoïlesco em seu exacto livro Le Parti Unique. (…) Manoïlesco é autor muito escutado e louvado nos nossos meios governamentais, que lhe pediram a lição contida no volume intitulado Le Siècle du Corporatisme. Perguntando o que é partido único, ele próprio respondeu: – C’est un parti politique ayant seul – de fait e de droit – la liberté d’action politique dans un pays et constituant, ainsi, une institution fondamentale du régime. Depois, mostrando que o partido único se manifestou de maneira sensivelmente análoga na Itália e na Alemanha, na Rússia e na Turquia, o professor Manoïlesco apresenta a «União Nacional» como exemplo acabado de partido único. A «União Nacional» não tem o monopólio legal da acção política, mas tem o monopólio de facto. (…) Democracia! A mais prostituída das palavras em todas as línguas, nos tristes dias de agora! São democratas os comunistas, são democratas os fiéis aos descaídos princípios da Revolução Francesa de 89, e são democratas os jacobinos totalitários: Hitler e Mussolini. Há a democracia formalista e a democracia orgânica, a democracia personalista e a democracia histórica da Suissa, há a democracia dos países monárquicos do Norte da Europa e a democracia turbulenta das repúblicas sul-americanas, há a democracia política e a democracia social, a democracia legalista, tradicionalista, espiritualista da Inglaterra e a democracia racionalista, arbitrária e invejosa, a democracia cristã e a democracia anticristã, – que sei eu… (…) Na bela definição de Ortega y Gasset, a essência da democracia é o diálogo com o adversário. Mas este diálogo não o autorizam as leis vigentes. E eu tenho que deixar de ser homem, o homem que renuncia à livre expressão do seu pensamento, à liberdade da palavra escrita. Porque reivindico as responsabilidades na criação e na divulgação da doutrina que alimentou esses que grosseiramente a deturparam para melhor a trair, me insurjo e revolto contra tanta confusão e tanto ludíbrio.

“- Continua então monárquico?

” – Para me declarar monárquico não peço licença ao rei nem aos bobos da corte. E não será qualquer menino do Coro, no intervalo do exercício do turíbulo, que me há-de negar consentimento para que eu diga, quando e onde quiser, tranquilamente ou ao repelão, os princípios que professo. Nada me importa ficar de mal com o rei, se estiver de bem com os mais ocultos anseios da Nação. Tomei como regra de vida política o animoso dístico antigo: Pro rege saepe, pro patria semper. A dedicação ao rei é condicional; o amor à Pátria não tem limitações. Os reis passam e com eles somem-se os cortesãos que os atraiçoaram atrozmente, ou não os desenganando os injuriaram atrozmente. Ai do rei a quem as graças do rival no Poder subjugaram o ânimo! Recordo o aviso de Sá de Miranda, o homem de antes quebrar que torcer, ao rei D. João III:
Um rei ao reino convém.
Vemos que alumia o Mundo
Um sol, um Deus o sustém.
Certa a queda e o fim tem
O reino onde há rei segundo
“Não é menos luminosa a sentença do brando Bernardes em Os últimos fins do homem que «As monarquias não as destrói tanto o inimigo com as mãos armadas, como o Príncipe com as mãos cruzadas». Muitas vezes a prudência é covardia. (…)

“Não falemos mais dos erros e das violências da 1ª República. Certo os teve, e grandes. Mas o Estado Novo não lhes ficou atrás na opressão e na intolerância. E isto diz quem ofereceu o peito às balas dos contrários e viu destroçada, por maus republicanos desse tempo, a casa de seus pais. Gostava de saber se quem acusa os desvarios da 1ª República padeceu por os combater, pois vejo empenhados em abocanhá-la alguns que em seus desmandos tomaram activa parte. (…)

” – No entanto espalhou-se que certo sector monárquico, ligado à Situação, espera que a evolução natural do regime leve à restauração do trono…

” – Insistindo esses monárquicos em esperar que o sr. Presidente do Conselho restaure a Monarquia, dirigem-lhe grave e consciente ofensa, pois julgam capaz de rasgar e trair a Constituição republicana que ele mesmo preparou, ditou e fez jurar, e mostram não ter lido aquela sua firme e clara advertência: «O que eu peço aos monárquicos, ou o que lhes aconselho, é que se disponham a ingressar na vida do Estado sem a ideia falsa e perigosa de que colaborar com a actual situação é dar um passo para a realização do seu ideal respeitável»

“O Estado Novo pode ser um vago sentimento de Estado, não é uma doutrina precisa de Estado. Caminha para a Monarquia e foge da Monarquia, conserva a República e teme a República, ora cedendo aos seus princípios, ora contrariando-os. Este equívoco perverso ser-lhe-á fatal. Com Mussolini e Hitler tivemos já a demonstração, levada às suas extremas consequências, do que pode dar um sistema encarnado num homem que despreza a realidade. (…)

“- Como entende, então, que deve ordenar-se o País?

“Entendo como sempre, sem o mais leve desvio ao que em dia já longínquo formulei, que na autonomia dos municípios, na sistematização profissional livre, no poder pessoal do rei dentro da esfera própria como fiador supremo das liberdades públicas, na aceitação honesta da Doutrina Católica para base da educação nas famílias, nas escolas e no convívio social, estão as grandes linhas que podem contribuir para a verdadeira restauração de Portugal. (…) “À luz destes princípios, tão sumariamente expostos (…) ainda creio, com o ardor dos vinte anos, que Portugal, quebradas para sempre as algemas que o atormentam e liberto do cativeiro em que jaz, há-de por fim reerguer-se com honra e glória.

“- Consola ouvir falar com tão firme esperança e ardente amor…

“- Custe o que custar, é preciso fazer de Portugal uma pátria livre para homens livres. Sinto que a minha vida não está mais em segurança. Vejo, e não tremo, que os idólatras buscam pôr-lhe termo. A seguir ao julgamento de Henrique Galvão muitas ameaças cobardes me foram dirigidas, a coberto de cauteloso anonimato. Agora as repetem enfurecidamente. Não importa. Como Ramiro de Maetzu aos sicários que o derrubaram, direi que também estes, embrutecidos pelo ódio, não sabem por que me matam, e eu sei que morro por querer restituir ao povo português, no verso formoso de Camões, a lusitana antiga liberdade!”.

Poucos dias depois, as palavras de Luís de Almeida Braga eram transcritas e tinham honras de chamada à primeira página no jornal República. O velho camarada de armas de Paiva Couceiro e de Rolão Preto, afirmara-lhes que o general Humberto Delgado havia despertado o abatido coração da Pátria.

Sintra: Maio de 1998
Lisboa: Vega, 1998
Lisboa: Unica Semper Avis, Março de 2000
[Este texto é uma edição abreviada de "Os Monárquicos" in Iva Delgado, Carlos Pacheco e Telmo Faria (coordenadores), Humberto Delgado - as eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173]
Publicado por Rui Monteiro no blogue "Causa Monárquica"

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