terça-feira, 12 de outubro de 2010

UM EQUÍVOCO CORROSIVO: REPÚBLICA E DEMOCRACIA

O cinismo de chamar Democracia ao processo de impor a um povo um regime estatal e de chamar democráticos aos métodos brutais de o manter envenenaram desde a fundação, ou antes, desde a instauração a República Portuguesa.

Há quase cem anos, a quatro de Outubro de 1910 rebentou, em Lisboa, uma revolução republicana que visava completar o processo iniciado dois anos antes com o assassinato do Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe.

Na véspera, o chefe civil do movimento e seu coordenador - o psiquiatra Dr. Miguel Bombarda - tinha sido assassinado por um doente mental.

Mesmo sem coordenação entre as várias forças que o constituíam, nomeadamente a de civis armados, o movimento "saiu": caótico, multicéfalo, improvisado.

A reacção, por parte das forças do Poder instituído, não foi melhor: hesitante, por isso desorganizada, por isso frouxa. Apenas Paiva Couceiro - o herói de África - teve um papel de destaque. Mas baseado apenas na sua bravura pessoal, sem tropas e sem estratégia, depressa entrou em colapso.

Mesmo assim, no meio da confusão reinante de ambos os lados, as primeiras horas pareceram (e foram) favoráveis ao Governo. Tanto que o chefe militar do movimento - o almirante Cândido dos Reis - considerando tudo perdido, se suicidou.

No espaço de 24 horas, a revolução perdia os seus dois chefes: o civil assassinado por um louco, o militar auto-imolado ao que ele julgava o seu fracasso.
Mas contra tudo e contra todos, contra toda a evidência da derrota, o comissário naval Machado dos Santos concentrou na Rotunda do Marquês de Pombal a sua tropa de soldados de várias procedências e paisanos armados. E esperou. Não sabia o quê, mas esperou. E fez bem.

Fez bem porque a desorganização pusilânime das "forças da ordem" acabou por produzir o vácuo. E sentindo-o, Machado dos Santos desceu a Avenida, foi aclamado no Rossio e aclamados e aclamadores daí foram todos juntos, anunciar da varanda da Câmara Municipal que a República estava instituída.

O que chega a ter graça é que estava mesmo. Não por mérito dos pobres revolucionários mas por demérito do Poder que não fora capaz de uma acção coordenada que disciplinasse soldados sem objectivosnem programa e maltrapilhos sem chefes mas armados como se os tivessem - uma tragicomédia. Comédia na forma, trágica nas consequências.
Paralelamente, o Rei D. Manuel II saíra das Necessidades quando o palácio começou a ser bombardeado por navios revoltosos surtos no Tejo. Foi para Mafra onde dormiu a sua última noite em Portugal. No dia seguinte, aí recebeu a notícia de que, em Lisboa "tudo estava consumado". Partiu para a Ericeira onde o esperava o iate real que o levou para um definitivo exílio.
No dia seguinte, o país atónito recebeu "por telégrafo" a notícia de que era uma República - como previra, tempos antes, João Chagas.
Este proeminente republicano é autor de uma frase que conjuntamente com uma outra de França Borges, definem o espírito com que se implantou a República em Portugal.

A propósito da adesão ou não adesão do povo e da província à projectada proclamação da República, disse um dia o primeiro: "A República faz-se em Lisboa e comunica-se depois ao país por telégrafo". O segundo foi ainda mais claro: "O povo irá para onde o mandarem ir".

O Partido Republicano Português, que se auto-intitulava democrata e proclamava fazer a revolução em nome da democracia e para a instituir, era tudo menos democrata. Mais: era profundamente antidemocrático.

Por duas razões fundamentais:

Primeiro, porque "impôs" ao povo português uma mudança de regime sem o consultar, sem querer saber da sua opinião e temendo mesmo sabê-la. Por isso preferiu o acto consumado.

Segundo, porque para sustentar esse facto consumado num ambiente que lhe era hostil, recorreu às mais tenebrosas formas de ditadura e de terrorismo prendendo sem culpa formada, exilando, espancando, assaltando e matando mesmo (e muitas vezes) quem se lhe opunha. Ou, mais simplesmente, quem expressamente não o apoiava, como era o caso da Hierarquia da Igreja.

Quanto à primeira razão convém acentuar que o país rural, a província era profundamente conservadora e fiel ao Rei. Republicanos eram algumas poucas dezenas de intelectuais de Lisboa e alguns, poucos do Porto, umas escassas centenas de anarquistas e pouco mais. Numa ou outra cidade da província havia um médico ou um advogado ou um farmacêutico que os conterrâneos achavam uma "ave rara" lunática porque se proclamava republicano... No país inteiro republicanos eram uns milhares. Que se concentravam no Portoe, principalmente em Lisboa. Estima-se que durante os seus dois primeiros anos de vida, entre 1911 e 1913, a República dispunha, contra cinco milhões de portugueses, de 300.000 republicanos. Foram estes que, por sua vontade "esclarecida", impuseram a República à maioria que consideravam bronca, analfabeta e, por isso, irrelevante.

Quanto à segunda, explica-se pela existência de uma figura tenebrosa: Afonso Costa. Hábil, arguto, instruído e sem quaisquer escrúpulos morais ou mesmo cívicos, não olhava a meios para atingir os seus fins. De uma megalomania verdadeiramente patológica e com uma sede de Poder insaciável e narcísica, era um anticlerical primário que via no clero e na Igreja a origem de todos os males nacionais e universais. Por isso, mal chegou ao Poder se propôs acabar com a religião em duas gerações...

Fundador do Partido Republicano Português, desde cedo Afonso Costa o dominou completamente com a sua astúcia e vontade férrea. Não ouvia nem consultava ninguém e eliminava os companheiros que lhe contestassem a autocracia com que dirigia o Partido. Através deste, dominou o país e os outros partidos, prepotentemente, recorrendo à intriga e ao terror sem limites, para o que se servia de alianças pontuais com a Carbonária a quem deixava o trabalho sujo dos assaltos, dos espancamentos e dos assassinatos.

E assim a República foi eliminando muitos dos seus mentores como Machado dos Santos - o "herói" da Rotunda - ou António Granjo.

Porque tudo isto era feito em nome da Democracia, o vocábulo tornou-se odiado e temido pelo povo português anónimo para quem, muitos anos depois, os "democratas" eram ainda os desordeiros espancadores e matadores.

O supremo cinismo de chamar Democracia a este processo de impor a um povo um regime estatal e de chamar democráticos aos métodos brutais de o manter envenenaram desde a fundação, ou antes, desde a instauração a República Portuguesa.

Este equívoco manteve-se até os dias de hoje em que nos discursos oficiais, na comunicação social e até nos manuais escolares nos é apresentado como um movimento libertário de massas. Foi o contrário disso: foi um movimento em que uma oligarquia burguesa tomou o Poder e o exerceu despoticamente para impor e mais ainda para manter um regime republicano.

Ao povo ninguém perguntou o que queria. Por isso a proclamadíssima Democracia não passou da máscara com que se acautelou uma oligarquia de profissionais liberais, latifundiários e grandes comerciantes. Quanto à arraia miúda envolvida, não passou da "tropa de choque" dessa oligarquia ou mesmo da sua "carne para canhão".

Equívoco que corroeu por dentro, e até hoje, a República Portuguesa.

Manuel  Moura Pacheco
Professor Universitário Aposentado
Director do Quinzenário católico portuense "A Ordem"

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